A crise de soberania dos estados-nação

AutorCarla Schmitz de Schmitz
CargoProcuradora do Estado de Santa Catarina
Páginas44-47
Carla Schmitz de SchmitzDOUTRINA JURÍDICA
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REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 659 I AGO/SET 2019
84 REVISTA BONIJURIS I ANO 31 I EDIÇÃO 659 I AGO/SET 2019
DOUTRINA JURÍDICA
Carla Schmitz de SchmitzPROCURADORA DO ESTADO DE SANTA CATARNA
A CRISE DE SOBERANIA DOS
ESTADOS-NAÇÃO
I
O ESTADO ESTÁ SOFRENDO UMA MUTAÇÃO ESTRUTURAL,
TECNOLÓGICA E ECONÔMICA, O QUE CONTRIBUI PARA UM
NOVO MODELO DE SOBERANIA NO MUNDO
Resumidamente, de acordo com o rol tra-
zido por José Luis Bolzan de Morais, pode-se
falar em cinco principais crises dos Estados,
a saber: a) crise conceitual (soberania); b)
crise estrutural (fiscal, ideológica e filosófi-
ca); c) crise instrumental (constitucional); d)
crise funcional; e) crise política (de represen-
tação)1.
O objetivo deste artigo é abordar a crise
conceitual, com foco na soberania externa dos
Estados, apontando as soluções que diferen-
tes autores têm apresentado para as referidas
espécies de crise.
1. O CONCEITO DE SOBERANIA NO
CONTEXTO DA EVOLUÇÃO DO ESTADO
O ser humano sempre necessitou de uma
certa organização e de comando em sua vida
social. De acordo com Sahid Maluf, o Estado é
uma realidade cultural constituída historica-
mente em virtude da própria natureza social
do homem, que encontra a sua integração no
ordenamento jurídico2.
A denominação “Estado”, do latim status,
estar firme, significando situação permanente
de convivência e ligada à sociedade política,
OEstado (aqui entendido como estado-
-nação), em seu clássico modelo de en-
tidade una e suprema, detentor abso-
luto do poder de produção legislativa
interna e representatividade externa,
necessita ser questionado e revisto diante de
novos atores sociais oriundos das transfor-
mações decorrentes das atuais relações pelas
quais a sociedade passa.
Os elementos basilares do Estado (povo, ter-
ritório, soberania, dentre outros apontados pela
doutrina) sofreram uma mutação estrutural
por conta da aproximação de espaços, realidade
virtual, tecnologia de comunicação, economia
conjugada, dentre outras inovações que mar-
cam a contemporaneidade, razão pela qual se
tornou impossível gerenciar a sociedade pelos
modelos adotados no Estado moderno, limita-
dos ao ordenamento jurídico interno e às escas-
sas normas jurídicas de direito internacional.
Em consequência deste novo cenário mun-
dial, os Estados têm vivenciado uma crise,
com surgimento de problemas e poucas so-
luções adequadas, tornando-se um ente mar-
ginalizador e desrespeitoso dos direitos dos
seres humanos.
apareceu pela primeira vez em O Príncipe, de
Maquiavel, escrito em 1513, conforme ressalta
Dalmo de Abreu Dalari3. O filósofo italiano
utilizou o vocábulo “Estado” no primeiro capí-
tulo de sua obra:
Todos os estados, todos os domínios que tiveram
e tem império sobre os homens, são repúblicas
ou principados. Os principados ou são hereditá-
rios, quando seu chefe é príncipe já longo tempo
ligado pelo sangue, ou são novos. Os novos são
totalmente novos, como foi Milão com Francesco
Sforza, ou são membros acrescentados ao esta-
do hereditário do príncipe que os recebe, como
é o reino de Nápoles ao rei da Espanha. Estes do-
mínios, assim adquiridos, sujeitos a viver sob um
príncipe, ou costumam ser livres, e se adquirem
com armas alheias, ou com as próprias, pela sorte
ou pelo mérito.4
O modelo atual de Estado é fruto de sua
evolução histórica através dos tempos. No
final do século 20, houve a transição de um
modelo de Estado mínimo, de cunho liberal,
para a efetivação de um Estado democrático
e social de direito.
Até o século 16 não existia a figura do Es-
tado propriamente dito, mas tão somente o
que Lênio Luiz Streck e José Luís Bolzan de
Morais denominaram “formas estatais pré-
-modernas”, a saber:
A – Oriental ou Teocrático – é uma forma estatal
definida entre as antigas civilizações do Oriente
ou do Mediterrâneo, onde a família, a religião, o
Estado e a organização econômica formavam um
conjunto confuso, sem diferenciação aparente.
Em consequência, não se distingue o pensamento
político da religião, da moral, da filosofia ou de
doutrinas econômicas. Características Fundamen-
tais: a) a natureza unitária, inexistindo qualquer
divisão interior, nem territorial, nem de funções; b)
a religiosidade, onde a autoridade do governante
e as normas de comportamento eram tidas como
expressão de um poder divino, demonstrando a
estreita relação Estado/divindade;
B – Polis Grega: caracterizada como: a) cidades –
Estado, ou seja, a polis como sociedade política
de maior expressão, visando ao ideal de autossu-
ficiência; b) uma elite (classe política), com intensa
participação nas decisões do Estado nos assuntos
públicos. Nas relações de caráter privado, a auto-
nomia da vontade individual é restrita;
C – Civitas Romana, que se apresentava assenta-
da em: a) base familiar de organização; b) noção
de povo restrita, compreendendo faixa estreita da
população; c) magistrados como governantes su-
periores;
D – Outras formas estatais da antiguidade, que
tinhas as seguintes características: a) não eram Es-
tados nacionais, ou seja, o povo não estava ainda
ligado pelas tradições, lembranças, costumes, lín-
gua e cultura, mas por produtos de guerras e con-
quistas; b) modelo social baseado na separação
rígida das classes e no sistema de castas; c) gover-
nos marcados pela autocracia ou por monarquias
despóticas e o caráter autoritário e teocrático do
poder político; d) sistema econômico (produção
rural e mercantil) baseado na escravidão; e) pro-
funda influência religiosa.5
Os mesmos autores indicam, ainda, a socie-
dade medieval como a principal forma estatal
pré-moderna, marcada pelo cristianismo, pe-
las invasões bárbaras e pelo feudalismo. Con-
jugando-se estes três elementos, as caracterís-
ticas principais desta forma estatal medieval
eram: permanente instabilidade política, eco-
nômica e social; distinção e choque entre po-
der espiritual e poder temporal; fragmentação
do poder, mediante a infinita multiplicação de
centros internos de poder político, distribuí-
dos aos nobres, bispos, universidades, reinos,
corporações; sistema jurídico consuetudiná-
rio embasado em regalias nobiliárquicas; re-
lações de dependência pessoal, hierarquia de
privilégios6.
Desta forma, no feudalismo havia uma dis-
tribuição de poderes e patrimônio entre vá-
rios senhores hierarquicamente superiores,
realidade que ocasionou o declínio da socie-
dade medieval. Nas palavras de Dallari: “Esse
quadro, como é fácil de compreender, era cau-
sa e consequência de uma permanente insta-
bilidade política, econômica e social, gerando
uma intensa necessidade de ordem e de auto-
ridade, que seria o germe de criação do Estado
Moderno.”7
Assim, tendo em vista a necessidade de uni-
dade, no século 16 surgiu o Estado moderno,
O modelo atual de Estado é fruto de sua evolução histórica. No final do
século 20, houve a transição de um modelo de Estado mínimo, de cunho
liberal, para a efetivação de um Estado democrático e social de direito

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