Entre cidadãos e inimigos: o discurso criminalizante da mídia e a expansão do direito penal como instrumentos de consolidação da subcidadania

AutorAloísio Krohling - Raphael Boldt
CargoPós-Doutor em Filosofia Política (UFRJ). , Professor do Mestrado em - Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais, Advogado e Professor Universitário.
1 Introdução

Temática extremamente relevante no âmbito das reflexões político-criminais contemporâneas, a chamada “expansão do direito penal” foi esplendorosamente analisada por Silva Sánchez (2002) e reflete a expansão da intervenção penal que, especialmente nas últimas décadas, tem sido observada no Brasil.

Nesse processo de expansão do ordenamento jurídico-penal, também chamado por Maurach de “hipertrofia penal”, vislumbramos dois fenômenos: o “direito penal simbólico” e o ressurgimento do “punitivismo” (JAKOBS; MELIÁ, 2007, p. 57).

Embora essa divisão seja feita meramente para fins didáticos, uma vez que a evolução legislativa não raro mescla esses dois aspectos, ambas as linhas de evolução constituem a linhagem do paradigma que Jakobs (2007) denomina “direito penal do inimigo”.

A transição do cidadão ao inimigo tem justificado, inclusive, o recurso ao recrudescimento das penas de prisão e, concomitantemente, a relativização das garantias substantivas e materiais (SILVA SÁNCHEZ, 2002).

Fonte de inspiração para o direito penal do inimigo, o direito penal simbólico surge a partir de um “[...] argumento legitimador de reformas legislativas e administrativas, voltadas ao esvaziamento das garantias processuais do suspeito e do acusado e ao recrudescimento dos poderes investigatórios e punitivos do Estado [...]” (DIAS NETO, apud SUXBERGER, 2006, p. 67). Nesse contexto, a criminalização de determinadas condutas configura-se como uma das causas do movimento de expansão do direito penal.

Não obstante empiricamente desprovidos de sentido, os instrumentos utilizados pelo direito penal no combate à realidade criminal tornam-se cada vez mais populares graças, principalmente, à mídia.

Em sua busca permanente por altos índices de audiência, a mídia não apenas informa – e contraria constantemente a necessidade de imparcialidade do texto jornalístico, agregando sensações, impressões ou opiniões do emissor – mas transforma fatos corriqueiros e relativamente destituídos de relevância em casos emblemáticos, capazes de justificar o discurso criminalizante que atualmente se espraia pela sociedade, produzindo e reproduzindo o temor ao delito, estilos agressivos de comportamento e a agravação das leis penais existentes.

De contravenções penais a homicídios, tudo se torna motivo para, desproporcionalmente e irresponsavelmente, promover a intervenção penal (seja através da atividade legiferante ou judicante) como o mais eficiente remédio para se combater uma doença que afeta toda a sociedade.

Confundir as causas – inúmeros problemas sociais estruturais e conjunturais; a título meramente exemplificativo, citamos pesquisa recente da ONU que considerou o Brasil como o segundo país que pior distribui sua renda, perdendo apenas para Serra Leoa, na África – com os sintomas (crimes) desta suposta patologia social, difunde a idéia equivocada de que a intervenção penal, isoladamente, irá conter a criminalidade nas suas mais variadas formas. De maneira contraproducente, atacam-se as conseqüências do problema, deixando sem solução suas verdadeiras causas.

Além de resultar na produção de uma verdadeira inflação legislativa, tal proposta favorece o surgimento de um direito penal simbólico, proveniente da elaboração de leis dirigidas à produção de uma impressão tranqüilizadora na opinião pública e de um legislador atento (QUEIROZ, 2005).

O discurso criminalizante ou, nas palavras de Nilo Batista (2003), o “dogma da criminalização provedora”, é apresentado pela mídia como instrumento capaz de influenciar a conduta de todos os “desajustados”, impelindo-os a praticarem certas ações e a se absterem de outras.

Ao sustentarmos a existência de um discurso midiático criminalizante, desejamos ressaltar o papel do discurso na mudança social e na construção da realidade. A nosso ver, mais do que simples forma de representação do mundo, o discurso é uma prática de significação do mundo (AMARAL, 2007).

Embora a análise do discurso seja um campo específico da Lingüística e da Comunicação, especializado em analisar construções ideológicas presentes em determinados textos, não poderíamos nos eximir de reforçar a importância da prática discursiva da mídia no âmbito penal.

Em virtude de ser uma construção social e não meramente individual, o discurso deve ser analisado considerando seu contexto histórico-social e suas condições de produção. A partir daí, compreendemos que o discurso midiático reflete uma visão de mundo determinada, necessariamente vinculada a de seus autores e à sociedade da qual fazem parte. Destarte, além de conferir significado ao mundo, a prática discursiva pode promover mudanças ou ajudar a reforçar o status quo vigente.

Ao difundir o medo e promover o recrudescimento das leis penais como solução para o problema da criminalidade, a mídia, através de seu discurso, engendra mudanças sociais e fortalece a tendência da anti-democratização mediante a construção de uma sociedade punitiva, assustada e obcecada pela segurança.

Principal forma de concretização das representações sociais, a linguagem permite que os meios de comunicação de massa legitimem a realidade que a própria mídia constrói.

A figura do especialista (advogados, promotores, professores, sociólogos, filósofos etc.) exerce função extremamente relevante nesse processo de legitimação da realidade fabricada pelos meios de comunicação, pois confere maior credibilidade ao discurso midiático. Segundo Amaral (2007), “[...] como o discurso da mídia é apreendido pelo senso comum como um discurso de autoridade, de quem sabe mais para quem sabe menos, ele conta com um elevado grau de credibilidade [...]”.

Apesar do poder exercido pela mídia na construção social da realidade carecer de estudos mais profundos, negar a influência do discurso midiático na configuração da realidade seria algo extremamente nocivo para a própria sociedade, pois somente a partir do seu reconhecimento poderemos assumir posturas mais críticas em relação aos meios de comunicação de massa.

Se “[...] os espectadores dependem cada vez mais da mídia para formar suas imagens de realidade, em especial daquela realidade que não podem ver diretamente

[...]” (AMARAL, 2007), o momento histórico que estamos vivendo torna-se propício para a percepção de uma realidade excessivamente violenta, em que o “inimigo” possui características inconfundíveis e deve ser aniquilado a todo custo para que a paz social (ou seria simplesmente a ordem social?) seja finalmente alcançada.

Ao partirmos do pressuposto de que “[...] o conhecimento advindo da mídia não é oferecido ao público como um dos possíveis, mas como o único possível [...]” (AMARAL, 2007), podemos sustentar que o discurso criminalizante dos meios de comunicação de massa passa a determinar nossa percepção sobre os fatos, normas e valores, fortalecendo o poder punitivo estatal e saciando a sede de retribuição e vingança da sociedade, ainda que para isso inúmeros direitos e garantias individuais sejam violados e os custos (reais) superem os benefícios (simbólicos).

2 Inflação legislativa e direito penal simbólico

Seria extremamente ingênuo e perigoso crer que as imperfeições do sistema penal originam-se tão somente da ação midiática ou que todo o sistema seja manipulado por um único grupo, coeso e orientado exclusivamente para a consecução de seus objetivos.

Teorias conspiratórias à parte, não poderíamos deixar de reconhecer que por meio de seu discurso criminalizante a mídia reforça algumas tendências do direito penal moderno. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (2004) assenta que

[...] uma das tendências mais evidentes no tocante às normas penais nas sociedades contemporâneas é a da hipertrofia ou inflação de normas penais, que invadem campos da vida social anteriormente não regulados por sanções penais. O remédio penal é utilizado pelas instâncias de poder político como resposta para quase todos os tipos de conflitos e problemas sociais.

No Brasil, onde desde a promulgação da Constituição Federal (outubro de 1988) foram produzidas 3.510.804 novas normas jurídicas3 (GOMES, 2006), a intervenção penal tem sido utilizada como resposta para quase todos os tipos de problemas sociais e converte-se em resposta simbólica oferecida pelo Estado em face das demandas sociais por segurança e penalização, veiculadas pela mídia, sem relação direta com a verificação de sua eficácia instrumental como meio de prevenção ao delito.

De ultima ratio, o direito penal converte-se em prima ratio, deixando de ser instrumento subsidiário na proteção de interesses ou bens jurídicos. Segundo Luiz Flávio Gomes (2006),

[...] a natural conseqüência (e esse é outro aspecto do mesmo fenômeno) da hipertrofia do Direito Penal consiste em causar sua inoperatividade, com os decorrentes prejuízos para a prevenção geral (e a própria eficácia e reputação do Direito Penal).

Zaffaroni (apud CARVALHO, 2006) acentua que esse crescimento vertiginoso de leis penais promove algumas características peculiares na América Latina:

a) a espetacularização da atuação das agências políticas e judiciais no que tange ao exercício de poder dos sistemas penais; b) a incapacidade de controlar, mesmo com a exacerbação punitiva, o assombroso crescimento da...

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