Criminalizacao e castigo na formacao do estado-nacao: a imprensa chilena durante a reforma do sistema prisional (1832 a 1850).

AutorValdebenito, Hugo J. Castro

Introducao (1)

Durante as primeiras decadas de estruturacao dos estados nacionais latinoamericanos apresentaram-se grandes problemas socio-politicos derivados das rupturas independentistas e das dificuldades em construir--ou em alguns casos validar--uma nova ordem interna. Esta ordem funcionou como objetivo norteador nos projetos governamentais dos estados nascentes. Nos casos de Chile e Argentina--com Diego Portales e Juan Manuel de Rosas respectivamente--este processo foi acompanhado por uma parafernalia politico-intelectual que propugnou a criacao de uma consciencia nacional castigadora ao mesmo tempo que endurecia a politica de disciplinamento para a plebe (2). Neste periodo, iniciaram-se esforcos para criar uma estrutura institucional punitiva articulada a partir de um sistema simples de carceres, presidios, lugares de confinamento e punicao politica etc. Lugares que, pensava-se, seriam capazes de atenuar os problemas derivados das transgressoes dos "residuos sociais que ainda viviam na anarquia que deixaram as guerras de independencia" (El ARAUCANO, 1832, p.6). A formulacao de um novo ius puniendi foi acompanhada pela construcao de uma mentalidade coletiva punitiva/sancionadora que justificava "socialmente" a utilizacao de metodologias punitivas associadas ao Antigo Regime e baseadas principalmente nas discussoes contratualistas que eram intrinsecamente processadas no interior do Estado de Direito. Ou seja, esse novo ius puniendi devia ser regido por principios que tornavam mais evidente a "humanidade" com que os novos governantes crioulos impunham a ordem social, especialmente sobre as classes populares, atraves do controle e da disciplina carcerarios (PAVARINI, 1985, p.35), (3) atraves de modelos de punicao estatal com objetivos reformadores e modeladores de condutas.

O papel da imprensa chilena foi fundamental durante o periodo inicial da republica, especialmente posto que serviu de plataforma para a disseminacao do pensamento punitivo moderno que se desenvolvia principalmente a partir dos paises centrais (4). Ademais, foi tambem um canal de transferencia intelectual para exemplificar as experiencias dos modelos carcerarios norte-americanos e sua eventual reproducao no pais. Particularmente, referimo-nos aos projetos penitenciarios de Auburn, Sing Sing e Pensilvania, que foram bastante observados pelas elites chilenas (Castro et al, 2018, p.73).

Neste trabalho, nos propomos a desvendar o papel que a imprensa oficialista ocupou na formacao e disseminacao de um pensamento politico-intelectual que justificava o castigo penitenciario como ferramenta de controle social para as classes populares. Noutras palavras, procuramos ca determinar o papel desempenhado pela imprensa na formacao da sociedade punitiva no Chine oitocentista. Isso a fim de construir um quadro historico que permita esclarecer moderadamente as tendencias e ingerencias editoriais e as caracteristicas do conteudo publicado durante o periodo inicial de construcao do estadonacional no que se refere a ideias estrangeiras sobre a aplicacao de sentencas, tratamento prisional e os elementos culturais proprios de uma sociedade baseada na punicao estatal.

Para esses fins, o artigo e dividido em tres secoes breves. Na primeira parte, analisase a formacao da sociedade punitiva a partir de seus aspectos historicos e suas vertentes teoricas modernas. Observam-se os principios orientadores da punicao e sua evolucao historica. Da mesma forma, enfatizam-se os aspectos vinculados a justica criminal e a ciencia criminologica como elementos proprios de uma sociedade punitiva. Em segundo lugar, expoem-se os argumentos, ideias e tendencias pesquisados na imprensa nacional chilena durante os anos de 1832 e 1850. Em particular, utiliza-se como fonte principal o periodico conservador "El Araucano", por constituir-se como um canal governamental e oficial para a difusao e divulgacao de ideias de "ordem e progresso". Finalmente, expoem-se algumas consideracoes finais e projeta-se a pesquisa para outras margens de pesquisa historica no campo do estudo historiografico sobre a questao criminal.

1--Genese do criminoso como inimigo social e a necessidade de "reformar" punindo

1.1--Debate teorico sobre a origem da criminalidade no estado moderno

Faz pouco tempo que o Fundo de Cultura Economica publicou "A sociedade punitiva", um livre de Michel Foucault (5) que reune algumas de suas aulas no College de France. O texto, que permaneceu inedito ate 2013--quando foi publicado em frances--contem um imenso dossie teorico sobre a trajetoria historica e as caracteristicas filosoficas que moldaram e transformaram o pensamento punitivo e criminologico das sociedades europeias modernas. Uma de suas principais posturas indica que o sujeito criminal se transformou num inimigo social a partir da necessidade de vingar as transgressoes a ordem publica (FOUCAULT, 2016, p.355). Por exemplo, Foucault argumenta reproduzindo um argumento de Beaumetz na Assembleia Constituinte francesa em outubro de 1789 que revela a orientacao que se buscava dar as muitas mudancas sociais que derivariam posteriormente deste processo revolucionario. Beaumetz assinalava:

Um delito foi cometido: a sociedade inteira foi ferida em um de seus membros; o odio do crime ou o interesse privado ensejam uma denuncia ou motivam uma queixa; o ministerio publico e avisado pelo ofendido ou despertado pelo clamor geral. Constata-se o delito, recolhem-se os indicios, verificam-se as pistas. E necessario que a ordem publica seja vingada (FOUCAULT, 2016, p.64).

Este pensamento e uma extensao do que propunha Beccaria (2011) na Europa, especialmente no que se refere a aplicacao das penas e sua proporcionalidade. Sem duvida, as posicoes teoricas sobre a formacao de um consentimento punitivo, manifestado na figura do criminoso como inimigo social, sao muito mais abundantes na literatura classica e especializada. Sem ir mais longe, Durkheim colocaria certas propostas teoricas para explicar o nascimento do sujeito criminal como uma figura transgressora da ordem social. Durkheim --ao contrario de Foucault--define o crime como o ato que ofende estados fortes e precisos da consciencia coletiva, e o criminoso como um agente imprescindivel para a revitalizacao da coesao social, porquanto sua punicao possibilita a reafirmacao normativa do laco social (TONKONOFF, 2012, p.104). Para Durkheim (1986), o castigo penal constitui um ritual publico e violento que, interpelando sentimentos e crencas comuns, ratifica a posicao transcendente dos valores nos quais um grupo se reconhece como tal. Por isso, pode-se afirmar que o delito e "necessario" porque "relaciona-se as condicoes fundamentais de toda vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade; porque essas condicoes de que e solidario sao indispensaveis para a evolucao normal da moral e do direito" (DURKHEIM, 1986, p.95).

A posicao de Foucault, no entanto, reside em sustentar que a punitividade moderna atravessa um processo historico mediante o qual termina por subtrair-se a si e a seus efeitos da vista do publico, realizando-se de um modo menos expresivo e mais instrumental de punir. Nao obstante, postulando que o objetivo especifico do sistema penal consiste em selecionar, perseguir e punir somente alguns dos comportamentos "anormais" que se espalham por toda a sociedade, e estabelecendo que e esta uma funcao vital na reproducao das relacoes de poder vigentes nesta sociedade, tambem inverte a perspectiva habitual segundo a qual a criminalidade seria um fenomeno fundamentalmente patologico ou disfuncional que os agentes de controle social teriam a funcao de erradicar. Por isso afirmou que "a prisao fabrica delinquentes, mas os delinquentes afinal de contas sao uteis tanto no dominio economico como no politico. Os delinquentes servem para alguma coisa" ( FOUCAULT, 2016, p.64).

Eis aqui que nas posicoes divergentes de Durkheim e Foucault chegua-se a um ponto de convergencia sobre a utilidade do crime nas estruturas de ordem do estado moderno e a necessidade de punir para controlar e ordenar a sociedade, ou, em outras palavras, a criacao de uma sociedade da punicao e a vinganca social com fins estruturais.

No entanto, argumentos modernos sobre a necessidade de punir certos elementos "nocivos" da sociedade remontam aos processos revolucionarios dos seculos XVI11 e XIX, que formam a base dos estados nacionais republicanos. Os proprios revolucionarios franceses partiam de um principio formulado por Rousseau em O contrato social (1762), porque se afirmava que como o criminoso e o inimigo da sociedade, ha que exila-lo ou mata-lo. Robespierre, numa posicao aparentemente anti-roussoniana e, portanto, com base no mesmo principio teorico, objetava que, embora o criminoso seja um inimigo da sociedade, esta nao tem o direito de mata-lo, porque, uma vez que se apoderou de um criminoso, a batalha acabou, e esta de certa forma frente a um inimigo cativo, e seria tao barbaro para a sociedade matar um inimigo batido como um guerreiro matando seu cativo ou um adulto uma crianca: "a sociedade que mata o criminoso a quem julgou e como um adulto que mata uma crianca" (ROBESPIERRE, 2016, p.97).

1.2--Ociosidade e vadiagem como matriz geral de delinquencia. Criterios fisiocratas e utilitarismo.

Por outro lado, e da perspectiva dos primeiros estudos economicos sobre a criminalidade, o debate se abre para...

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