Internacionalização do Direito Penal e da política criminal: algumas reflexões sobre a luta jurídico-penal contra o terrorismo

AutorManuel Cancio Meliá
CargoProfessor Titular de Direito Penal, Universidade Autônoma de Madrid, Espanha
Páginas1-22

Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

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Introdução

Quando se fala da “globalização” ou da “internacionalização” do Direito penal, parecem estar claros quais são os pontos de partida básicos que delimitam e configuram a questão: por um lado, o Direito penal é considerado geralmente a manifestação jurídica por excelência da soberania do Estado. Com destaque especial na tradição jurídico-política a que se denomina europeu-continental, a ideia de codificação (das normas penais) – através do conteúdo político e jurídico-constitucional do princípio da legalidade – lhe dá uma relevância que vai muito além de sua significação estritamente técnico-legislativa, a serviço da segurança jurídica. O Direito penal, e determinados elementos de sua configuração jurídico-técnica constituem, portanto, em princípio, um bloco (especialmente) particular num ordenamento jurídico estatal. Por outro lado, contudo – como se sublinha cada vez mais insistentemente na bibliografia –, a crescente globalização da economia (e da sociedade) não pode ocorrer sem que se gere, também, uma criminalidadePage 3 globalizada, marcando uma nova agenda para o Direito penal: “frente a internacionalização do crime, urge responder com a internacionalização da política de combate ao crime1”.

Este “crime internacional(izado)”, logicamente, afeta, sobretudo, âmbitos que se acham diretamente relacionados com a interconexão econômica do mundo, isto é, determinados delitos econômicos em sentido estrito, certas hipóteses transnacionais de responsabilidade pelo produto ou algumas modalidades de danos ambientais internacionais. Todavia, neste contexto também adquire especial relevância o desenvolvimento de uma espécie de islamita-terrorista internacional em uma rede de troca de informações, coordenada, sobretudo, pela internete – trata-se de uma nova fase evolutiva do fenômeno que já tem sido batizada como o “formato ‘terceiro milênio’ do terrorismo2” – e que parece ter se constituído para as sociedades do Ocidente no arquétipo de uma organização criminosa internacional moderna, e, com isso, também do crime internacional da atualidade. Os principais setores desta criminalidade transnacional – e, com isso, as pontas de lança da política criminal ocidental do momento – estão provavelmente em determinada infrações econômicas com implicações internacionais, os delitos relacionados com o tráfico de drogas de escala internacional, diversas formas de danos ambientais de caráter transnacional, os delitos produzidos no contexto de movimentos migratórios e, como antes se dizia, na cada vez maior interação internacional de algumas organizações terroristas3.

Em todos estes setores, o elemento coletivo – sob o rótulo da luta contra a criminalidade organizada – é decisivo para a definição dessas novas formas de criminalidade: trata-se sempre de organizações que têm uma influência essencial na mídia e na valoração do potencial de riscoPage 4 pelos agentes políticos e da população, exercendo também, correspondentemente, um influxo determinante na configuração concreta dos conteúdos da política criminal prática neste âmbito4.

No entanto, esta preeminência das organizações na criminalidade internacional não leva a que esta se identifique sempre, da perspectiva da origem social de seus autores, com uma pertinência a estratos dirigentes da sociedade em questão. Pelo contrário, a qualificação desta criminalidade neste contexto varia de modo muito notável, entre seu entendimento como “crime of the powerful5” ou como “crime of the powerless6”: neste sentido, pensa-se tanto em ameaçadoras “organizações de tráfico de pessoas” como nos paupérrimos patronos das embarcações de madeira que – sendo estes em ocasiões evidentemente autores (materiais) e, às vezes, vítimas – protagonizam a imigração clandestina nas costas do sul da Europa; no tráfico de narcóticos, aparecem no imaginário público tanto os temidos “carteis internacionais de drogas” como a presença em cárceres ocidentais de grande número de pequenos contrabandistas (conhecidos em espanhol como “mulas”).

Finalmente, no que diz respeito às repercussões desta criminalidade internacional sobre o Direito penal positivo, há que sublinhar já agora que nem sequer está claro se o Direito penal globalizado supõe uma ordenação positiva mais repressiva, ou, pelo contrário, mais frouxa: ao potencial expansivo da harmonização de ordenamentos penais, sublinhada com insistência na bibliografia7, contrapõe-se com frequência a evidente desregulação que comporta a globalização econômica, repercutindo esta necessariamente também no Direito penal8.

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A tensão político-criminal que, segundo uma generalizada convicção, gera este “crime internacional” um tanto quanto amorfo descarrega-se, como é sabido, sobretudo em quatro vias de internacionalização do Direito penal9: em primeiro lugar, é necessário mencionar uma nova compreensão, e uma intensificação generalizada, no campo da cooperação judicial, e, em um sentido mais amplo, na colaboração entre serviços de polícia. A tendência vai à direção da debilitação do princípio da territorialidade: da extradição (corporal) ao reconhecimento (ideal) de resoluções alheias10. Em segundo lugar, como é natural, o ímpeto internacionalizador manifesta-se também na harmonização formal11 dos ordenamentos nacionais através de tratados de Direito internacional, se bem que este processo – precisamente no que toca o seu caráter internacional – frequentemente se mostra “muito mais oculto12”, já que depois da frequente transposição ao Direito nacional já não há uma consciência geral da origem das novas normas. Em terceiro lugar, o processo supranacional que tem lugar na UE – União Europeia13 – que oscila entre a harmonização e a afirmação de uma competência legislativa autônoma da União14 –, evidentemente é um centro de gravidade essencial da internacionalização na Europa, e cabePage 6 pensar que no futuro existirão processos similares em outros contextos geográficos15. Por fim, há que se constatar uma intensificação também no campo do Direito penal internacional em sentido estrito: ainda que se discuta intensamente sobre a verdadeira densidade deste Direito penal global, parece claro que também aqui começou um novo ciclo evolutivo16.

Com o breve esboço feito delimitou-se o campo em que, conforme a opinião geral na discussão teórica, tem lugar a atual globalização do Direito penal. Entretanto, a partir da perspectiva aqui adotada, junto com estas primeiras manifestações jurídico-positivas da internacionalização também se deve constatar a convergência – permita-se, por ora, uma formulação aproximada – de certos discursos sobre o direito penal, isto é, de certo modo, do entorno ideológico do Direito positivo. A seguir procurar-se-á fazer alguma reflexão sobre estes discursos penais internacionalizados. Primeiro a partir de uma perspectiva geral (2), depois, especificamente (e a título de exemplo) sobre o terrorismo (3).

2 Processos de internacionalização (ideologia”)
2. 1 Ciência do Direito penal

Atualmente, um dos objetos essenciais à ciência do Direito penal em nossa tradição, a dogmática jurídico-penal (concretamente: a dogmática de origem alemã, praticada tanto em Portugal quanto na Espanha), parece estar (de novo) em crise. Sem embargo, se no passado mais recente a utilidade do trabalho dogmático se posicionou como um objeto de discussão teórica – em umaPage 7 época em que havia a esperança de se poder marginalizar a pena em sentido estrito através da ressocialização –, agora predomina a impressão de que a evolução que questiona as bases tradicionais da dogmática é impulsionada, antes de tudo, pelo próprio legislador, de modo que, uma vez convertido o impulso político-criminal em Lei, estar-se-ia minando desde dentro a elaboração dogmática. Não é já um programa alternativo ao Direito penal, abolicionista, o que questiona instituições básicas da dogmática jurídico-penal, senão que são certas inserções modernas no Direito positivo que geram a crise: no plano do injusto, diferenças nos padrões penais (pense-se, por exemplo, em certas penas para delitos graves contra bens jurídicos personalíssimos em comparação com as penas previstas no âmbito dos delitos de tráfico de drogas) aos quais falta uma possível explicação racional; na redação dos tipos, antecipações da punibilidade que praticamente dinamitam categorias dogmáticas inteiras, como as de autoria e participação, tentativa e consumação ou outras instituições centrais da teoria da imputação.

Apesar desta evolução, como é sabido, tem lugar, simultaneamente, em muitos ordenamentos penais ocidentais, a “questão de fé17” de que se existe uma convergência científica de entidade comparável provavelmente deva ser contestada negativamente18; no essencial, parece ainda plenamente adequada a imagem traçada por Fletcher, que vê um mundo jurídico-penal (ocidental) fundamentalmente bipolar, fracionado no círculo jurídico anglossaxão e no círculo jurídico continental, situando-se em volta do segundo vários círculos concêntricos ao lado da ciência do Direito penal alemã, especialmente influente19. É certo que nos últimos anos pode-se verificar dentro do “primeiro círculo” (no que se poderia mencionar talvez junto à Alemanha e Itália, Portugal, América Latina e Espanha) um maior intercâmbio; particularmente, a ciência do Direito penal alemã tem mostrado ultimamente certa tendência a considerar também trabalhos publicados em outros idiomas20, e também se pode dizer que em todo o continente jurídico-penal há um maior interesse pela teoria jurídico-penal de língua inglesa; todavia, não se pode dizer...

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