Os Crimes Contra a Honra Frente aos Princípios Constitucionais de Proteção da Pessoa Humana

AutorRodrigo Cesar Picon de Carvalho
CargoAdvogado
Páginas38-48

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Introdução

O s crimes contra a honra se encontram esculpidos no Código Penal de 1940, época em que princípios democráticos como a intervenção mínima e a liberdade de expressão não eram valorizados, uma vez que o Brasil se encontrava sob a ditadura varguista do Estado Novo.

Ademais, na época, a honra era algo extremamente valioso, de suma importância, cuja proteção era demasiada e possibilitava situ-ações como o crime de rapto consensual, quando a mulher virgem menor de 21 anos era vítima (art. 220), o crime de adultério (art. 240) e o crime de sedução, quan-do se seduzia mulher virgem entre 14 e 18 anos para manter relação sexual com ela (art. 217, todos do Código Penal).

Entretanto, passados mais de 75 anos, o Brasil mudou. Os valores e os princípios mudaram. A população mudou. Praticamente tudo mudou. E não poderia ser diferente com o direito. Após 1988, adveio uma nova ordem jurídica, em que princípios constitucionais democráticos passaram a ostentar um status revelante, acima de todas as normas e demais princípios.

Nessa seara, questiona-se, atu-almente, como ficaram os crimes contra a honra, em face de princípios democráticos como da inter-venção mínima e da liberdade de expressão: se continuam ou não em vigor, devem ou não punir seus transgressores utilizando-se do direito penal, dentre outras dúvidas acerca do assunto.

1. Crimes contra a honra
1. 1 Introdução

O Código Penal trata, nos crimes contra a pessoa, em seus art. 138 e 145, dos chamados crimes contra a honra, onde, logicamente, o bem jurídico penalmente tutelado é a honra. Honra é, segundo o dicionário, "um princípio de comportamento do ser humano que age baseado em valores bondosos, como a honestidade, dignidade, valentia e outras características que são consideradas socialmente virtuosas"1.

A honra pode ser objetiva ou subjetiva. A honra objetiva é aquele que o sujeito possui perante a sociedade, é a fama que a pessoa possui em seu círculo social. Já a honra subjetiva é aquela interna, que o agente possui de si mesmo. A diferença é fundamental, uma vez que os crimes de calúnia e difamação atingem diretamente a honra objetiva, enquanto que a honra subjetiva é atingida somente pelo crime de injúria.

A Constituição Federal de 1988 garantiu a inviolabilidade da honra como direito fundamental da pessoa humana, assegurando a sua proteção e a possibilidade de indenizar, material ou moralmente, em casos de violação (inciso X do art. 5º da carta magna). Já em relação às normas infraconstitucionais, garantiu o legislador a proteção penal de tal direito, punindo-se com pena privativa de liberdade aquele que a atingir. A proteção penal da honra ocorre, conforme leciona Greco (2015, p. 444):

Sabemos que a honra é um conceito que se constrói durante toda uma vida e que pode, em virtude de apenas uma única acusação leviana, ruir imediatamente. Por essa razão, embora a menção constitucional diga respeito tão somente à necessidade de reparação dos danos de natureza civil, tradicionalmente, os códigos penais têm evidenciado a importância que esse bem merece, criando figuras típicas correspondentes aos crimes contra a honra.

Vale salientar que a proteção da honra não é dada somente na esfera penal. Conforme determina a própria Constituição Federal, em caso de violação da honra, aquele que a violar deve reparar os danos causados, sejam estes morais ou materiais. E o Código Civil corrobora com tal pensamento, ao determinar que qualquer ato que violar direito causar dano, moral ou material, a outrem, será con-siderado ato ilícito (art. 186), que deve ser indenizado (art. 927), em montante igual ao dano causado (art. 944 c/c art. 953), podendo ser fixado pelo juiz se não houver prejuízo material (art. 953, par. único).

Os crimes de honra podem ser praticados através da fala ou da escrita, além de mímicas ou símbolos, desde que tenha o caráter expressivo de ofender a honra alheia. Normalmente, são crimes unissubsistentes, quando se consuma o crime com um só ato, não advindo, tentativa. Entretanto, conforme o caso, pode ocorrer de o crime contra a honra ser praticado mediante várias condutas, o que certamente caberá possibilidade de se punir pela via tentada.

1. 2 Crime de calúnia

Determina o art. 138 do Código Penal que é crime "caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime" (BRASIL, 1940). As penas variam entre seis meses e dois anos de detenção, ou multa.

Caluniar significa atribuir fal-samente a outrem conduta imoral ou reprovável. É atitude daquele que, não importando o motivo - vingança, ódio, raiva, mágoa, ou simplesmente para fofocar -, diz que outra pessoa cometeu um crime que sabe que não cometeu. A calúnia visa exatamente a impedir que uma falsa imagem de criminoso seja espalhada aos quatro cantos onde, certamente, será difícil apagar posteriormente.

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Difere-se da denunciação calu-niosa (art. 339) no sentido de que, na primeira, o agente conta à outra pessoa que determinada pessoa é criminosa, sabendo que não o é; no segundo crime, o agente dá início a inquérito policial, processo judicial, investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa por imputar a alguém crime que sabe que a vítima não cometeu. A segunda é mais reprovável, já que ela moveu a justiça por uma conduta criminosa contra uma pessoa que sabe que é inocente. Por essa razão, a pena é demasiadamente exacerbada em relação à calúnia (dois a oito anos de prisão, além de multa).

A calúnia é, portanto, um crime contra a honra objetiva, uma vez que atinge a imagem da vítima perante a sociedade - o que não quer dizer que possa atingir também a honra subjetiva da mesma, atingindo seu âmago e sua moral. Para maior proteção à honra objetiva, também comete crime de calúnia aquele que, sabendo ser falsa a imputação dada a alguém, espalha ou divulga (§ 1º do art. 138). É importante salien-tar a expressão "sabendo" descrita no § 1º retromencionado, não havendo a escrita da expressão ou deve saber - como ocorre, por exemplo, na receptação qualificada (art. 180, § 1º) e no crime de perigo de contágio venéreo (art. 130). Dessa forma, não há que se falar em dolo eventual para aquele que propaga ou divulga imputação falsa dada a alguém.

Para configurar o crime de ca-lúnia, é necessário que o agente impute um fato que seja falso e seja crime. Deve ser salientado que, conforme leciona Cunha (2015, p. 163), o crime de calú-nia ocorre se o fato for inexistente ou, mesmo existente, não for a vítima o autor. Da mesma forma, Greco (2015, p. 423) leciona que não configura calúnia a falsa im-putação de cometimento de contravenção penal ou fato atípico, uma vez que isso seria analogia in malam partem, vedada pelo ordenamento jurídico. O autor nos dá o seguinte exemplo:

Imagine-se a hipótese em que o agente atribui à vítima o fato de estar "bancando o jogo de bicho". Estar atuando como banqueiro do jogo do bicho configura-se na contravenção penal tipificada no art. 58 do Decre-to-Lei 6.259, de 10 de fevereiro de 1944, que diz:

Art. 58. Realizar o denominado "jogo do bicho", em que um dos participantes, considerado comprador ou ponto, entrega certa quantia com a indicação de combinações de algarismos ou nome de animais, a que correspondem números, ao outro participante, considerado o vendedor ou banqueiro, que se obriga median-te qualquer sorteio ao pagamento de prêmios em dinheiro.

Não poderia o agente, portanto, ser responsabilizado pelo delito de calúnia, mas tão somente, como dissemos, pelo delito de difamação.

Configura-se calúnia, portan-to, quando o agente imputa a alguém o cometimento de um crime que sabe que não existiu ou que não for a vítima o autor. A pena, conforme dito anteriormente, é de seis meses a dois anos de prisão, e multa, sendo aumentada em 1/3 nos casos do art. 141 do Código Penal - exceto se o crime for cometido contra o presidente da República, haja vista que, pelo princípio da especialidade, o crime do art. 26 da Lei 7.170/83revogou tacitamente este, quanto ao chefe do Executivo Federal. É crime de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95), a ação penal é privada (art. 145 do Código Pe-nal), cabendo, em regra, composição dos danos (art. 72) e suspen-são condicional do processo (art. 89, ambos da Lei 9.099/95).

1. 3 Crime de difamação

Já o art. 139 do Código Penal determina que é crime "difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação" (BRASIL, 1940). Difamar é fazer com que a pessoa perca a boa fama ou a reputação, é falar mal, detrair. Ocorre a difamação quando o agente espalha fatos do agente que ofendem sua boa fama, sua reputação, que ofende sua honra objetiva.

Conforme leciona Hungria (1979, p. 84-85), a difamação: consiste na imputação de fato que, embora sem revestir caráter criminoso, incide na reprovação ético--social e é, portanto, ofensivo à reputação da pessoa a quem se atribui. Segundo já foi acentuado, é estreita a sua afinidade com a calúnia. Como esta, é lesiva da honra objetiva (reputação, boa fama, valor social da pessoa) e por isto mesmo, supõe necessariamente a comunicação a terceiro. Ainda mais: a difamação, do mesmo modo que a calúnia, está subordinada à condição de que o fato atribuído seja determinado. Há, porém, diferenças essenciais entre uma e outra dessas modalidades de crime contra a honra: na calúnia, o fato imputado é definido como crime e a im-putação deve apresentar-se objetiva...

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