Crimes eleitorais

AutorAmaury Silva
Ocupação do AutorJuiz Eleitoral no Estado de Minas Gerais. Professor na área jurídica - Graduação e Pós-Graduação
Páginas393-458

Page 393

A singularidade do direito eleitoral constitui uma característica que leva a uma flutuação de um verdadeiro caleidoscópio que justifica a incidência interdisciplinar jurídica com outros ramos do direito. Não é diferente com o direito penal, podendo-se falar ao menos em um setor de tangência entre o direito eleitoral e o penal, com o formato de direito penal eleitoral.

O princípio da intervenção mínima, orientador maior da presença do direito penal como mecanismo de tutela aos bens jurídicos relevantes, lança suas luzes sobre as implicações eleitorais que possam ser catalogadas como conflitos sociais. E à margem e à míngua de insatisfatória resolução pelos outros meios à disposição do direito eleitoral, legitima a atuação de um direito penal, com o enfoque eleitoral.

Segundo precisa definição de Suzana de Camargo Gomes,

a locução crimes eleitorais compreende todas as violações às normas que disciplinam as diversas fases e operações eleitorais e resguardam valores ínsitos à liberdade do exercício do direito de sufrágio e autentici-dade do processo eleitoral, em relação às quais a lei prevê a imposição de sanções de natureza penal. (In: Crimes Eleitorais. Editora Revista dos Tribunais, p. 26).

O tratamento da questão no cenário do Código Eleitoral é formulado nos art. 283 a 354, com os dispositivos dos arts. 283 até 288, CE, referindo-se às normas preliminares e gerais, enquanto que o remanescente dos comandos diz respeito às definições dos tipos em seus preceitos primários (descrição fática) e secundários (penas). Há ainda estipulação de regras concernentes ao processo eleitoral penal nos arts. 355 usque 364, do Código Eleitoral.

Cabe o acréscimo de que não é somente no Código Eleitoral que existe a previsão de crimes eleitorais, em geral, podendo ser anotada em qualquer diploma componente da legislação eleitoral. Assim, verifica-se a presença da definição de tipos penais na Lei 9.504/97; Lei Complementar 64/90 e Lei 6.091/74, entre outras.

Page 394

é possível a previsão de crime ou pena em Resolução do Tribunal Superior Eleitoral?

Não. O art. 1º do Código Penal e o art. 5º XXXIX da Constituição Federal tratam do princípio da legalidade que resguarda a elaboração e a previsão de crimes ou penas, apenas se houver sua previsão anterior pela espécie normativa da lei. A Resolução do TSE - embora seja modalidade normativa de cumprimento obrigatório, conforme legitimi-dade do poder regulamentar da Justiça Eleitoral, estabelecido pelo art. 23, IX e XII, Código Eleitoral - não pode ultrapassar os limites que justificam sua existência, ou seja, dar aplicabilidade às normas legais e não contrariá-las ou extravasar seus conteúdos.

O art. 105, Lei 9.504/97, com redação pela Lei 12.034/2009, ainda proíbe a utilização do poder regulamentar para restringir direitos ou estabelecer sanções diversas daquelas previstas em lei, determinando que essa regulação seja editada até o dia 05 de março do ano eleitoral.

Já tivemos oportunidade de destacar que:

As resoluções do TSE possuem desse modo o atributo de lei, embora não sejam tecnicamente leis, trazendo o caráter cogente e de abstração, pois têm força de lei, mas não se equiparam a esta.

Com isso, a princípio as resoluções são espécies normativas de caráter inferior à lei e devem guardar respeito a elas. Trata-se de um ato regulamentar. (In: Reforma Eleitoral. Editora JH Mizuno, 2010, p. 259).

Conclui-se, assim, ser impossível a previsão de tipos ou sua modificação por Resolução, bem como a modificação do conteúdo de pena. Ressalva-se, no entanto, a possibilidade legítima de ocorrerem tipos penais eleitorais em branco, cuja norma complementar advenha de Resolução do TSE, o que não viola o princípio constitucional da legalidade ou reserva legal para o direito penal.

E a "lei seca" pode ser criminalizada?

Entende-se como "lei seca" as restrições quanto à venda, distribuição e consumo de bebida alcoólica no dia das eleições ou períodos imediatamente anterior ou posterior ao dia da votação.

Page 395

A proibição daquelas condutas, se realizadas por qualquer ato normativo que não seja lei penal, jamais poderá ser reconhecida como crime de desobediência (art. 347, Código Eleitoral), independentemente da origem de sua edição pela Justiça Eleitoral ou Poder Executivo através de Ministério da Justiça, Secretaria de Justiça, Secretaria de Defesa Social ou Segurança Pública, ou, ainda, Polícias Federal, Civil ou Militar.

É de ser reconhecida como medida legítima e até mesmo, em algumas situações, recomendável e necessária, a proibição da distribuição e venda de bebida alcoólica no dia das eleições e períodos próximos, para fins de se resguardar a tranquilidade e segurança do pleito, o que pode ser realizado por aqueles entes acima citados, sob o enfoque do direito administrativo, em razão do poder de polícia, sujeitando os infratores a multa, advertência e até mesmo embargo, fechamento ou interdição do estabelecimento, com busca e apreensão de bebidas alcoólicas.

O consumo de bebida alcoólica, quer seja no dia das eleições ou não, pode trazer à formação do tipo penal do art. 62, Lei das Contravenções Penais, dependendo do caso concreto.

Pondera-se, assim, que não há como reconhecer a incidência de crime, em relação aos comportamentos acima descritos, mas infra-ções administrativas que podem assim estar previstas localmente.

Confira-se posição já adotada pelo Tribunal-Regional Eleitoral do Estado de Minas Gerais:

"RO - RECURSO ORDINARIO nº 52/94 - /MG

Acórdão nº 1707 de 08/11/1994

Relator(a) JOSÉ NEPOMUCENO DA SILVA

Publicação: DJMG - Diário do Judiciário - Minas Gerais, Data 24/2/1995 RDJ - Revista de Doutrina e Jurisprudência do TRE-MG, Volume 4, Página 285

Ementa:

Page 396

RECURSO CRIMINAL. VENDA DE BEBIDA ALCOÓLICA NO DIA DO PLEITO. CONDENAÇÃO ÀS SANÇÕES DO ART. 347 DO CPODIGO ELEITORAL. NAO HAVENDO LEI QUE DEFINA COMO CRIME A VENDA DE BEBIDA ALCOÓLICA NO DIA DAS ELEIÇÕES, NAO SE TENDO CONFIGURADO O CRIME DE DESOBEDIÊNCIA, POR NÃO CONSTAR NA DENÚNCIA A ORDEM DESRESPEITADA, E TENDO EM VISTA AINDA QUE O DESCUMPRIMENTO DE NORMA DE CONTEÚDO GENÉRICO NAO SERVE PARA CARACTERIZAÇÃO DO DELITO EM QUESTÃO, DÁ-SE PROVIMENTO AO RECURSO PARA SE ABSOLVER O REU.

Decisão: DERAM PROVIMENTO AO RECURSO PARA ABSOLVER O RECORRENTE, VENCIDO O JUIZ ERNANE FIDELIS, QUE CONFIRMAVA A DECISÃO DE PRIMEIRO GRAU." (www.tse.jus.br/jurisprudencia).

O princípio da insignificância pode ser aplicado no direito penal eleitoral?

A partir de uma análise eminentemente teórica do princípio da insignificância não se colhe qualquer impeditivo para a sua proclamação no âmbito dos crimes eleitorais. Mas deve ser evocado que a doutrina da criminalidade de bagatela tem origem no pensamento de Claus Roxin, logo com parâmetros de uma cultura e vivência prática do direito diversas da brasileira.

Os níveis de adaptação, aplicação e eficiência da norma jurídica, enfim, do controle social pelo direito penal, devem ser considerados para fins de adoção do princípio da bagatela.

Basta mencionar a síntese de Assis Toledo, a respeito da teoria:

Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. (In Princípios básicos de direito penal, Saraiva, 1994, p. 133).

Dessa maneira, a utilização da insignificância pelo direito penal brasileiro, conforme iterativa jurisprudência, deve ser objeto de detida análise para não se deixar à deriva de proteção bens jurídicos relevantes.

Page 397

Na linha desse raciocínio, o Excelso STJ condiciona a admissibilidade da aplicação do princípio da insignificância à reunião dos seguintes pressupostos: a) mínima ofensividade da conduta; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e, d) inexpressividade da lesão jurídica provocada - (AgRg no AREsp 679986 / PR, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Relator p/ Acórdão, Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 01/10/2015, DJe 04/12/2015).

O TSE sistematicamente tem repelido a incidência da bagatela ou nonada nos crimes eleitorais, baseando-se, sobretudo na gravidade e dano social que as condutas proporcionam, com perspectiva de que o bem tutela seja afetado, apresentando-se como de enorme relevância, pois se trata do livre exercício do voto e lisura do processo de obtenção do voto.

Confira-se a propósito: TSE - RESPE n. 118.8716 e Ag. Reg. AI n. 10672, ambos tendo como Relatora a Min. Carmem Lúcia (www.tse. jus.br/jurisprudencia).

Irrepreensível a ideia de restrição de aplicação da insignificância nos crimes eleitorais, porquanto o panorama do desenvolvimento sociopolítico do país não permite uma flexibilização com a legislação de contenção dos conflitos sociais desse jaez, ou seja, o direito penal eleitoral, instrumento com capacidade de enorme contribuição para o desenvolvimento do processo eleitoral sob pilares de normalidade e lisura.

Contudo, uma análise peremptória e que rechaça de plano a insignificância nos crimes eleitorais propicia um inadequado fechamento para se verificar, no todo, a questão posta em juízo e abrir espaços para injustiças. Assim, essa aferição deve ser feita com base no caso concreto, sendo que os critérios utilizados pelo STJ se apresentam com equilíbrio para se verificar tal contextualização da insignificância nos crimes...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT