O Crime de Redução a Condição Análoga à de Escravo (Art. 149, CP) e a Proteção da Integridade Moral dos Trabalhadores

AutorGisele Mendes de Carvalho - Hamilton Belloto Henriques
Páginas40-51

Page 40

Introdução

O presente artigo tem por inalidade identiicar e traçar as características fundamentais do bem jurídico protegido no delito de redução à condição análoga à de escravo, insculpido no art. 149 do Código Penal brasileiro.

O entendimento será o de que o bem jurídico tutelado neste caso é a integridade moral do ser humano, e não a liberdade individual, como prevê o Código Penal, pois caso fosse a liberdade, a vítima poderia dispor livremente dela e submeter-se à condição de escravo, situação totalmente inadmissível ante a proteção constitucional da dignidade humana no art. 1º, III, CF.

Deste modo, situar-se-á em seu devido lugar o crime de redução à condição análoga à de escravo, que deveria acompanhar outros delitos contra a integridade moral, tais como a tortura e o assédio moral. No entanto, o vetusto Código Penal brasileiro não conta com um Capítulo dedicado à proteção deste importante bem jurídico, situando incorretamente o crime do art. 149 entre os delitos contra a liberdade individual.

A integridade moral é certamente um dos mais relevantes direitos da personalidade do homem, merecendo um tratamento especial por parte do Direito do Trabalho, especialmente, e do Direito Penal, que deveria identiicar e proteger corretamente o bem jurídico violado pelo delito de redução a condição análoga à de escravo.

1. Direitos da personalidade: breves considerações

O reconhecimento da personalidade humana, como um conjunto de caracteres psicofísicos manifestados em direitos subjetivos, revestidores de uma essencialidade valorosa, ímpar, exclusiva do homem, caminha num sentido diretamente proporcional ao estado de civilidade e democratização de um povo em dado momento histórico. O reconhecimento de uma personalidade civil é característica dos povos modernos. Constitui resultado de "longa e trabalhosa" (REALE, 2012:228) evolução histórica, culminando com uma concepção indistinta dos homens, portadores que são de uma titularidade de direitos e obrigações ante a Ordem Civil estabelecida.

Page 41

Essa pessoa, conceituada pela Filosoia como substância natural dotada de razão (FRANÇA, 1991:45) que ganhou corpo nos ordenamentos jurídicos dos povos civilizados de forma gradativa e por vezes suscetível a inaceitáveis retrocessos, torna-se assim o elemento central da perspectiva jurídica dos Estados modernos, eis que o Direito estrutura-se em torno da noção de pessoa humana. Em ciência jurídica, pessoa é o sujeito de direitos, isto é, o ente capaz de adquirir direitos e contrair obrigações (FRANÇA, 1991:45).

Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro estatui ser a pessoa sujeito de direitos e deveres na ordem civil1, revelando o homem como um ser capaz, dotado de autonomia e poderes de livre exercício dos direitos decorrentes da norma jurídica. Eis a consagrada deinição de direitos subjetivos do homem.2

O ordenamento jurídico brasileiro, ao reconhecer um conjunto de direitos subjetivos cuja titularidade é atribuída aos homens, distingue espécies diferentes desses direitos, considerando uns como descartáveis (FRANÇA, 1991:85) e outros, no entanto, inalienáveis, insuscetíveis de renúncia por parte de seu titular, ou de não reconhecimento seja pelo Estado, seja por seus pares na vida em sociedade.3

Nesse sentido, esclarece Zulmar Fachin que "o constituinte de 1988 erigiu a pessoa humana como valor supremo do ordenamento jurídico. A escolha reletiu a prevalência da concepção humanista, que permeia todo o texto constitucional" (FACHIN, 2012:207).

Como se vê, o ordenamento jurídico brasileiro tem como núcleo ou elemento fundamental a noção de pessoa humana alçada a um patamar de prevalência ou proeminência na consideração total da ordem jurídica interna. Trata-se de um centro gravitacional em torno do qual gravitam todas as normas do ordenamento jurídico.

Da ideia de dignidade da pessoa humana emerge toda a principiologia constitucional, espraiando-se pelo vasto continente normativo do Estado, dando um sentido diretivo ao poder na medida em que exige sempre uma proteção da pessoa como sujeito de direitos.

Esse "valor fundante" (FACHIN, 2012:207) do Estado brasileiro, insculpido no art. 1º, inciso III, do texto constitucional, inspira a atuação de todos os poderes, vinculando o Estado no desempenho de suas atividades essenciais, nas perspectivas legislativa, executiva e jurisdicional, impondo uma atuação protetiva da pessoa humana para seu pleno desenvolvimento em um meio que se apresente seguro.

Não por acaso, esse valor nuclear do ordenamento jurídico brasileiro localiza-se no pórtico da Constituição Federal, "evidenciando o conteúdo axiológico que o permeia" (FACHIN, 2012:207).

No entanto, essa noção de pessoa humana foi limitada por vezes em momentos históricos outros, como, por exemplo, no Direito Romano, em que pessoas eram só os homens livres, sendo os escravos assemelhados a coisas (FRANÇA, 1991:45). A evolução jurídica caminhou, no sentido de uma universalização desse conceito, estendendo-se a todos os seres humanos indistintamente.

Page 42

Na atualidade, o conceito de pessoa transcende o ordenamento jurídico privatista, em que um fenômeno de despatrimonialização do Direito Civil, outrora o exclusivo deinidor do conceito de pessoa, passa a fomentar um publicização desses direitos que, concentrados no paradigma constitucional da dignidade da pessoa humana, espraiam-se por todo o Ordenamento Jurídico, irradiando uma eicácia vinculante de proteção da pessoa e dos direitos inerentes à sua integridade psicofísica, entendidos esses como direitos da personalidade do homem.4

Assim, o Direito Constitucional eleva-se a paradigma protetivo do ser humano ante uma ampla esfera gravitacional de direitos fundamentais do homem cidadão, de forma geral, e de uma categoria especíica desses direitos, de forma especial, quais sejam os direitos da personalidade do homem, todos gravitando na órbita do valor central da dignidade da pessoa humana.

Por essa constatação, tem-se que o Estado de Direito se instaura como ente protetor da pessoa humana. É por sua natureza um meio, existe para proteger a pessoa e o faz a partir do reconhecimento de sua dignidade. A pessoa humana é a razão de ser do Estado. Tomemos sua adequada conceituação.

Na perspectiva lecionada por Adriano De Cupis sobre o conceito de personalidade, tem-se que essa capacidade jurídica é geralmente deinida como sendo uma susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações jurídicas (DE CUPIS, 2008:19).

Não há que se identiicá-la com os direitos ou obrigações, por ela ligados ou atribuídos ao indivíduo, mas tomá-la como essência de uma qualidade jurídica, produto do Direito Positivo, não uma realidade anterior a este e por ele encontrada.5

Essa susceptibilidade a titularizar direitos e obrigações está relacionada ao ordenamento jurídico de modo tal que o direito positivo, como árbitro (DE CUPIS, 2008:20) na atribuição de personalidade, pode estabelecê-la de forma geral ou circunscrita, atribuindo a uns somente obrigações e não direitos,6 ou limitando estes a certas categorias por razões de sexo, religião, raça, nacionalidade ou classe social (DE CUPIS, 2008:20).

Disso decorre que o ordenamento jurídico detém um arbítrio ao atribuir personalidade, como resta claro no caso do nascituro7 ou de entes diversos do homem,8 cujo marco do reconhecimento depende do Direito positivo.

Evidentemente, algumas limitações há, como as de natureza racial (DE CUPIS, 2008:20) que uma vez incompatíveis com um modelo protetor da dignidade do homem, a partir de conquistas históricas e da consagração dos direitos fundamentais, foram sendo eliminadas, restando apenas aquelas recepcionadas pelo modelo democrático eleito pelos povos civilizados.

Em verdade, toda positivação jurídica visa tutelar direitos. Seja ordenando comportamentos sociais que os protejam contra atos lesivos, seja airmando materialmente o reconhecimento daqueles como imprescindíveis ao pleno desenvolvimento e transcender humanos.

Essa vertente material dos direitos objetivados na norma ganha relevância na seara dos direitos personalíssimos, cujo destino é dar conteúdo à própria personalidade do homem (DE CUPIS, 2008:23).

Page 43

Assim, numa perspectiva positivista, tem-se que pela norma do Estado é atribuída ao indivíduo, em momento considerado oportuno, a capacidade para titularizar direitos e vincular-se a obrigações ante a ordem jurídica. É a lei quem confere personalidade ao homem, estabelecendo o momento em que o conceito de pessoa se efetiva, como merecedor de proteção pelo Direito.

A doutrina tradicional classiica os direitos da personalidade a partir de suas características, inserindo-os no "sistema dos direitos subjetivos" (DE CUPIS, 2008:34).

Nesse sentido Adriano De Cupis, a partir do que considera como "summa divisio tanto do Direito objetivo como dos direitos subjetivos, isto é, a divisão entre Direito público e Direito privado" (DE CUPIS, 2008:34), insere-os no rol dos direitos privados. Decorre daí, reconhecer como direitos subjetivos privados aqueles que respeitam aos indivíduos como tais, ou seja, considerados no círculo dos ins que têm como simples seres humanos.9

Sob essa perspectiva: vida, integridade física, honra e liberdade como direitos que satisfazem "aspirações e necessidades próprias do indivíduo considerado em si mesmo", portanto na esfera da utilitas (interesse) privado (DE CUPIS, 2008:34).

Como assinala o mesmo autor, isso não exclui a existência de direitos públicos da personalidade, classiicados que são pela doutrina juspublicista alguns direitos da personalidade como direitos subjetivos públicos,10 em especial os assim chamados direitos da liberdade civil (DE CUPIS, 2008:34).

Dessa forma, numa dimensão publicista, os...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT