Crime de Redução à Condição Análoga à de Escravo e Relações entre Globalização e Desenvolvimento Urbano

AutorAline Virgínia Medeiros Nelson
Páginas95-1

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1. Breve introdução sobre a globalização e o impacto nas relações de trabalho

Introdutoriamente, alerta-se que o delito de redução a condição análoga à de escravo, tipificado no artigo 149 do Código Penal, tem natureza que envolve não somente o Direito Penal do Trabalho, mas também o Direito Penal Econômico, na medida em que afeta não só as relações de trabalho e a própria liberdade e dignidade do trabalhador, mas também gera desequilíbrios à ordem econômica.

Assim, é preciso dizer que o delito econômico, o qual confere ao direito penal à proteção da ordem jurídica econômica, pode ser entendido como um ato típico dirigido contra o conjunto da economia ou contra ramos ou dispositivos essenciais desta, ou seja, esses crimes atingem a atividade social do trabalho, a econômica, a fiscal, a alfandegária, bem como o meio ambiente.1

Esses delitos tornaram-se cada vez mais evidentes no mundo globalizado. No âmbito das cidades, a globalização provocou o crescimento desordenado destas, agravando quadros de desemprego entre a população mais pobre e sem qualificação profissional. Na conjuntura internacional, a divisão bipolar do mundo, capitalismo e socialismo, transformou-se em ambiente propicio para integração cultural, econô-mica, normativa e ideológica entre as nações, tendo promovido uma abertura de canais de comunicação entre o mundo e o local, despertando nas sociedades um sentimento compartilhado de solidariedade e de se viver em uma aldeia global.2

A partir da década de 1980, a conjuntura econômica torna-se bastante clara: as atividades econômicas externas foram caracterizadas em dois tipos de movimento: liberalização de mercados e globalização, que pode ser descrita como um processo caracterizado pela sobreposição e inter-relação de diversos fatores, dentre estes, intensificação do fluxo de capitais entre as nações, formações de blocos regionais de

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comércios, alteração dos padrões de produtividade e a ampliação da importância dos fatores tecnológicos, maior importação das empresas multinacionais e intensa ligação entre os mercados financeiros.3

Percebe-se que globalização representa um conceito plurívoco, já que está associado a múltiplos aspectos e acontecimentos, percebidos a partir da década de 1980, mas originários de diversos outros fatores históricos como a Revolução Industrial e a colonização das Américas e da África, por exemplo. Todo esse movimento, que repercutiu economicamente na década de 1980, levou as empresas a desenvolver estratégias para superar a saturação do mercado consumidor e a se adaptar a maior instabilidade e menor controle regulamentar e burocrático nos mercados, daí a expansão e dispersão das atividades econômicas por diversos países.

Pela busca da forma mais eficiente de alcançar lucro, o modo capitalista de produção aprofundou as injustiças sociais e os conflitos entre o capital e o trabalho, em razão do divórcio entre valor de uso e valor de troca dos produtos de trabalho. Essa conjuntura acentua a exploração de estamentos sociais inferiores, provocando o aumento da desigualdade social e da concentração de renda e fomentando a exploração do trabalho escravo em regiões pobres.

Pode ser dito que uma das características da globalização é o impacto imediato que um fato/ato pode ocasionar em diversos lugares, afetando especialmente, em decorrência da vulnerabilidade, países pobres.4 Como dado comprobatório, cita-se o Relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD-ONU,5 do ano de 1999, o qual constatou o aumento das desigualdades em face de intensificação do processo de integração dos mercados. Assim, ao mesmo tempo em que as grandes cidades articulam-se à economia global, concentrando poder mundial, também tornam-se depositárias de muitos segmentos excluídos da população. É o que Dupas6 chama de "face metropolitana da exclusão social".

Nesta conjuntura em que instituições privadas ganham espaço na condução da sociedade, Perry Anderson7 expõe que as maciças estruturas das próprias corporações multinacionais firmaram a dinâ-mica social de que os que estão acima têm a coerência do privilégio; e os que estão abaixo carecem de unidade e solidariedade. Tudo isso visando o surgimento de um novo "trabalhador coletivo".

No mesmo sentido, Celso Furtado8 assenta que da inserção do sistema de subdivisão internacional do trabalho na economia, que em âmbito global se periferiza, decorrem inúmeras transformações, nas quais é possível identificar três tipos de indústrias: i) as diretamente ligadas ao setor primário-exportador; ii) indústrias complementares de importações; iii) indústrias que se beneficiam, de alguma forma, de proteção natural. Na evolução natural das economias periféricas, as indústrias do segundo tipo são as que mais se desenvolvem, por acompanharem as tendências do mercado. Já as últimas são as que menos crescem, já que pouco despertam interesse dos investidores estrangeiros.

Outro ponto significativo é a acumulação de capital: as empresas capitalistas estão sempre buscando revelar o potencial de lucro de novas combinações insumo-produto, capazes de elevar sua posição no mercado concorrencial. As empresas que estão ganhando com a acumulação desigual de rendas empresariais procuram novos escoadouros para seu capital, e aquelas que estão perdendo buscam novas formas de capturar fluxos de caixas adicionais. Paras as primeiras, as novas combinações funcionam como armas ofensivas, e para as segundas, como armas defensivas.9

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nesse plano global, o sistema econômico capitalista, cuja lógica é de acumulação de capital, busca transformar bens ambientais em produtos, inserindo-os na dimensão mercantil,10 incutindo o consumismo e o uso indiscriminado de recursos. Além disso, conforme já esclarecido, mantendo o foco na maximização dos lucros, provoca acumulação de renda e desequilíbrios socioeconômicos internos e transnacionais, impedindo um desenvolvimento equitativo das populações e criando, através da miserabilidade, ambiente propício para atuação de exploradores de mão de obra.

Sob esse enfoque da globalização, Paul Singer11 esclarece que a pobreza está relacionada ao grau de integração ao mercado global. Para ele, há basicamente duas espécies de comunidades carentes: i) as historicamente excluídas, que vivem em economia de subsistência, de forma quase autossuficiente, como, por exemplo, as comunidades quilombolas; e ii) As recém-excluídas, formadas por trabalhadores de indústrias, que encolheram ou desapareceram em função da abertura do mercado interno e do progresso tecnológico, como a região do ABC Paulista, nas quais os moradores passaram a sobreviver com rendas precárias, em forma de benefícios previdenciários, como o seguro-desemprego e aposentadoria. Em ambos os casos, nota-se a exclusão dessas comunidades ao acesso à economia de mercado.

Outro impacto da globalização foi o aumento dos fluxos migratórios, os quais acabaram por facilitar as ações de organizações criminosas voltadas para exploração do trabalho escravo. No curso Brasil, entre as décadas de 1930 e 1990, somente relacionados à atividade agrícola, vitimando migrantes internos, porém cada vez mais comum no ambiente urbano, conforme será demonstrado no decurso deste artigo.

Diante desse panorama de transformações e gradativa complexidade do poder punitivo estatal e respectivos instrumentos legais, o presente artigo objetiva, através da pesquisa bibliográfica, analisar o impacto do crime de redução à condução análoga à de escravo na busca de desenvolvimento do país. Assim, por meio de um corte epistemológico, apresentam-se como objetivos específicos deste trabalho auferir sobre a proposta de desenvolvimento econômico relacionado à justiça social, bem como analisar a tendência de escravização da mão de obra na atualidade da economia brasileira. Com isso, ao fim, espera-se prestar uma contribuição para compreensão do tema e abrir caminhos a novas discussões.

2. Desenvolvimento e valorização do trabalhador

Para compreender como o Direito Penal do Trabalho consubstancia-se em instrumento para o desenvolvimento, é preciso antes fazer uma análise do que seja considerado como desenvolvimento em face dos valores e princípios albergados pela Constituição Federal/1988.

Sob uma ótica global, esclarece-se que a perspectiva do desenvolvimento sofreu uma transformação no curso do século XX. Nasceu fundamentado no liberalismo econômico, durante a Revolução Industrial Inglesa, tendo o enfoque quantitativo, de acúmulo de riquezas. Porém, com os horrores da Segunda Guerra mundial e de toda consequência social, política e econômica que este evento trouxe ao mundo, a proposta de desenvolvimento passou a ser abarcada de muito mais complexidade, ao envolver valores de dignidade, de equidade, de justiça social, enfim, de valorização plena do ser humano.

Desse modo, a partir da década de 1960, com os sentimentos de solidariedade e de fortalecimento da sociedade civil, a ordem econômica passou a ser atrelada à ordem social, por consequência, o conceito de desenvolvimento foi reformulado, adquirindo um enfoque qualitativo, ou seja, relacionado à qualidade de vida da população e à liberdade, à democracia, à distribuição de renda, à garantia do bem-estar social, aos índices de desenvolvimento humano e à proteção e ao meio ambiente, e não somente mais de simples crescimento econômico.

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Indo-se além, pode ser arguído que o grau de desenvolvimento de um país traduz-se no grau de liberdade de seu povo. Sob a ótica instrumentalista do Direito, essas liberdades podem ser classificadas como:12 i) liberdades políticas; ii) facilidades econômicas; iii) oportunidades sociais; iv) garantias de transparência; e v) segurança protetora.

Assim, para o...

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