A criança e o direito à convivência familiar

AutorJuliana Rodrigues de Souza
Páginas71-101

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"A criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão". Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças (1989)

Este capítulo visa tratar, mais especificamente, sobre o direito à convivência familiar para a criança e para o adolescente. Num primeiro momento, aborda-se a modificação da antiga Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral. No novo paradigma, os direitos essenciais da criança e do adolescente têm características peculiares devido à condição de pessoas em desenvolvimento; menciona, também, que as políticas voltadas para a juventude devem agir de forma integrada entre a família, a sociedade e o Estado. Num segundo momento, apresenta-se não apenas o exercício do poder familiar, mas, principalmente, o direito à convivência familiar para as crianças e os jovens. Num terceiro momento, por fim, analisam-se as consequências da ruptura dos vínculos conjugais no desenvolvimento da personalidade dos filhos.

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2.1. Novo paradigma: a doutrina da proteção integral

É importante registrar que o Brasil acerta o passo com a história ao elaborar a Constituição Federal de 1988. Várias mobilizações, de diversos setores da sociedade, foram realizadas para que os direitos da criança e do adolescente fossem garantidos. Por isso, alterou-se o enfoque da legislação menorista presente naquela época, abandonando-se a Doutrina da Situação Irregular e, de forma inovadora, estabelecendo o novo paradigma da Doutrina da Proteção Integral.

Como visto anteriormente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 ocorreu o abandono da Doutrina da Situação Irregular, vigente até então na legislação brasileira, passando a adotar-se uma nova doutrina. Com efeito, houve uma mudança paradigmática relevante para a criança e para o adolescente, denominada de Doutrina da Proteção Integral.

Sob esse enfoque, "trata-se, em verdade, não de uma simples substituição terminológica ou de princípios, mas sim de uma mudança de paradigma"1.

A expressão "doutrina" significa que existe uma ideia central ou um valor, desenvolvidos por princípios e regras, não sendo exclusivo do mundo jurídico2.

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A história brasileira, no âmbito constitucional, pode se vangloriar pela presença constante da Declaração de Direitos e Garantias Individuais do Cidadão, uma vez que a CF/88, além de enumerá-los no art. 5º, insere a Doutrina Constitucional a declaração especial dos Direitos Fundamentais da criança e adolescente, proclamando a "Doutrina da Proteção Integral" e consagrando os direitos específicos que devem ser universalmente reconhecidos3.

Assim, devido a "maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até 18 anos, como pessoas em desenvolvimento a lei, os faz destinatários de tratamento especial"4, por isso, é consagrado a eles, constitucionalmente, o princípio da prioridade absoluta e da proteção integral.

Neste contexto, importante destacar os ensinamentos de Martha de Toledo Machado. Para a autora, o ponto focal no qual se apóia a concepção positivada do texto constitucional é a compreensão de que a criança e o adolescente, por se acharem na peculiar condição de pessoas humanas em desenvolvimento, se encontram em situação especial e de maior vulnerabilidade. Portanto, é possível dizer que se justifica a outorga de um regime especial para garantir direitos, permitindo a construção de potencialidades humanas em plenitude para a infanto-adolescência. Acrescenta-se a isso o fato de que a personalidade da criança e do adolescente não está ainda completamente desenvolvida. A autora reforça

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outro aspecto ao relembrar que o ordenamento jurídico brasileiro confere à criança e ao adolescente um tratamento mais abrangente e efetivo, justamente, pela condição de seres diversos e mais vulneráveis em relação aos seres adultos5. Da mesma forma, Tânia da Silva Pereira esclarece que:

"[...] direitos inerentes a todas as crianças e adolescentes possuem características específicas devido à peculiar condição de pessoas em vias de desenvolvimento em que se encontram e que as políticas básicas volta-das para a juventude devem agir de forma integrada entre a família, a sociedade e o Estado. Recomenda-se que a infância deverá ser considerada prioridade imediata e absoluta, necessitando de consideração especial, devendo sua proteção sobrepor-se às medidas de ajustes econômicos, sendo universalmente salvaguardados os seus direitos fundamentais"6.

Portanto, não há dúvida de que a doutrina da proteção integral está em conformidade com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, uma vez que agrega o reconhecimento da criança e do adolescente diante de todos os direitos inerentes ao ser humano e também a outros direitos decorrentes da condição especial por serem pessoas em desenvolvimento.

Com efeito, o princípio da dignidade da pessoa humana, como alicerce do ordenamento jurídico brasileiro, apresentou

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novidades essenciais não somente para direito de família, mas ainda para o direito da infância e da juventude.

A família passou a ter um papel indispensável no desenvolvimento da sociedade, sobretudo com a garantia da dignidade humana para todos os membros. A população infanto-juvenil passou a ser reconhecida como sujeito de direitos, merecedora de proteção integral e de absoluta prioridade no seu tratamento.

Quanto a esse reconhecimento, Tânia da Silva Pereira esclarece que foi reforçado, no Brasil, a partir da década de 80, um imenso debate sobre os diversos ângulos da proteção infanto-adolescência. A orientação para tais debates buscava auxílio nos documentos internacionais específicos para esta estratégica vertente dos direitos humanos7. Dessa forma, as normas internacionais tiveram grande influência na construção da Doutrina da Proteção Integral, sendo a Declaração dos Direitos da Criança de Genebra, de 26 de março de 1924, o primeiro documento internacional que se preocupou em reconhecer os direitos da criança e do adolescente. No entanto, o que realmente marcou o reconhecimento da criança como sujeito de diretos, carecedora de proteção e cuidados especiais, foi a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, acolhida em 1959 pela ONU. Esse último documento estabeleceu a proteção especial para o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual; a educação gratuita e compulsória, a prioridade em proteção e socorro; a proteção contra negligência, crueldade e exploração; a proteção contra atos de discriminação, dentre outros

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princípios8. Convém ainda lembrar que, além desses documentos mencionados, diversas outras normas internacionais serviram de inspiração para a Doutrina da Proteção Integral, como já exposto no capítulo anterior.

Referindo-se as influências internacionais, Tânia da Silva Pereira9e Antônio Fernando do Amaral e Silva10assinalam que merece destaque especial a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada por unanimidade na Assembléia-Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Nessa perspectiva, a autora esclarece que a Convenção foi resultado de um esforço entre vários países que, durante dez anos, buscaram definir quais os direitos humanos comuns a todas as crianças, objetivando formular normas legais aplicáveis as diferentes conjunturas socioculturais existentes entre os povos.

Importante salientar que:

"A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), preocupada na caracterização da família, considerou-a grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, (devendo) receber a proteção e a assistência necessárias a fim de

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poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade"11.

Conclui-se, portanto, que a doutrina da proteção integral rompe com o padrão pré-estabelecido na Doutrina da Situação Irregular e passa a absorver os valores insculpidos na Convenção dos Direitos da Criança. É indispensável complementar, também, que a criança e o adolescente titularizam, nos dias atuais, direitos fundamentais como qualquer ser humano12.

Pela primeira vez, foi assumida a doutrina da proteção integral, fundada em três pilares, sendo: 1º) as crianças e os jovens são reconhecidos pela peculiar condição de pessoas em desenvolvimento e titulares de proteção integral; 2º) crianças e jovens têm direitos à convivência familiar; 3º) as Nações subscritoras obrigam-se a assegurar os direitos insculpidos na Convenção com absoluta prioridade13.

Importante destacar que, o princípio da Doutrina da Proteção Integral foi inserido no texto da Constituição Federal de 1988, mais precisamente nos art. 227 e 228. E, sob essa perspectiva, não há dúvida de que a referida doutrina está

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"em uma perfeita integração com o principio fundamental da dignidade da pessoa humana"14.

Esse paradigma introduzido pela nova Doutrina era baseado na compreensão de que a criança e o adolescente devem ser reconhecidos como sujeitos de direitos, observando a condição especial de pessoas em desenvolvimento. Além disso, hoje em dia compete à família, à sociedade e ao Estado assegurar os direitos da população infanto-juvenil, com absoluta prioridade, reconhecendo-os, deste modo, como cidadãos de plenos direitos.

Nesse momento, cabe salientar que a criança e o adolescente são titulares de todos os direitos individuais e sociais reconhecidos pela Constituição Federal de 1988, nos artigos 5º, 6º e 7º. E, inclusive, possuem direitos distintos dos adultos, chamados de direitos fundamentais especiais em razão da peculiar condição em que se encontram15.

"Regulamentando e buscando dar efetividade à norma Constitucional, foi promulgado o Estatuto da...

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