Respeito às diferenças (às crenças religiosas): a autonomia do paciente e a oposição dos seguidores da religião "Testemunhas de Jeová" quanto à transfusão sanguínea

AutorCarmela Salsamendi de Carvalho
Páginas2-19

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Introdução

Tradicionalmente, os Estados Nacionais comportavam apenas um povo, que havia de ser uno, uniforme. Não havia espaço para o reconhecimento de minorias étnicas, culturais, linguísticas ou religiosas; "havia o povo dominante, a língua oficial, muitas vezes a religião oficial"12. Até a Alemanha e a Itália, países de unificação recente, executaram medidas repressivas algumas para a homogeneidade oficial de seu povo. A França, por sua vez, de longa tradição unitária, sempre despendeu esforços oficiais para a unificação linguística, pela eliminação de dialetos locais.

Hoje, o quadro é outro. Vive-se um pluralismo étnico, linguístico, jurídico, religioso, e procura-se o reconhecimento, proteção e inclusão das minorias ou grupos vulneráveis. A sociedade brasileira contemporânea não foge desse cenário.

Olhando para o pluralismo religioso da sociedade, a Constituição Federal veio a estabelecer o direito fundamental a liberdade religiosa e a manter a separação entre o Estado e Igreja. Em consequência, há o dever de respeito à diversidade de religiões por parte do próprio Estado e dos demais indivíduos.

Os adeptos da religião Testemunha de Jeová eram, em 2001, como informa TIMI3, seis milhões, o que representava 0,1% da população de todo o planeta. Já no Brasil passavam de um milhão (1.104.886), segundo o Censo do IBGE de 20004. Destaca-se, todavia, que qualquer que seja o número de fiéis desta religião, há de se respeitar o seu exercício, sem discriminação, nos limites da lei.

Quando um seguidor da mencionada crença se opõe à transfusão sanguínea por motivo religioso, está exercendo o direito de liberdade religiosa, devendo a atuação do médico ou de outro profissional da saúde com o paciente ser respeitosa, no sentido de compreender os valores do outro e aceitar sua decisão. O exercício desse direito é manifestação da autonomia do indivíduo, ou melhor, do paciente. Todavia, o exercício do direito de liberdade religiosa sofre alguns limites, éticos e jurídicos.

O presente trabalho analisará a situação de recusa à transfusão sanguínea pelos seguidores da Testemunha Jeová. Procurar-se-á, no primeiro ponto, contextualizar o pluralismo religioso na sociedade brasileira contemporânea e, depois, examinar o direito Page 3 à liberdade religiosa na Constituição Federal de 1988. No segundo ponto, abordar-se-á o respeito às crenças religiosas como consequência do respeito da autonomia do paciente. Por fim, verificar-se-á os limites normativos ao exercício do direito à liberdade religiosa, observando o procedimento médico a ser tomado diante da recusa de transfusão sanguínea por um seguidor da religião Testemunha de Jeová.

1 Pluralismo religioso brasileiro
1. 1 A sociedade brasileira plural, as crenças religiosas e autonomia do paciente

Da mesma maneira como se dá no mundo afora, a sociedade brasileira abriga pessoas de diferentes religiões. Conforme o censo do IBGE de 2000, pode-se citar as seguintes religiões existentes no Brasil: a Católica apostólica romana; as evangélicas de missões, que se dividem em Evangélica adventista do sétimo dia, Igreja evangélica de confissão luterana, Igreja evangélica batista, Igreja presbiteriana e outras; as evangélicas de origem pentecostal, que se dividem em Evangélica evangelho quadrangular, Igreja universal do reino de Deus, Igreja congregacional cristã do Brasil, Igreja evangélica e outras; outras religiões evangélicas; Testemunha de Jeová, Espírita, Espiritualista, Umbanda, Candomblé, Judaica, Budismo, outras religiões orientais, Islâmica, Hinduísta, Tradições esotéricas e as Tradições indígenas5.

Esse pluralismo religioso no país demanda que haja o reconhecimento e a aceitação dessa realidade, bem como a garantia do direito à (liberdade de) religião.

O direito à religião, saliente-se desde já, é um direito fundamental da pessoa humana, sendo reconhecido assim pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, no seu art. 18, que vale ser transcrito: "Todo homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular".

Em sintonia com a realidade sociocultural brasileira, a Constituição Federal de 1988 assenta a liberdade religiosa e o respeito à diversidade cultural e religiosa do povo brasileiro, como se verá no próximo subitem, reconhecendo o pluralismo religioso.

A questão do respeito às diferentes crenças religiosas aparece em muitos casos. Quando se exige o respeito à autonomia do paciente - uma conquista recente -, clamase diretamente o respeito a sua fé e consciência religiosa.

Como bem escreve Fortes,

O respeito pela autonomia da pessoa conjuga-se com o princípio da dignidade da natureza humana. Respeitar a pessoa autônoma pressupõe a aceitação do pluralismo Page 4 ético-social, característico de nosso tempo; é reconhecer que cada pessoa possui pontos de vista e expectativas próprias quanto a seu destino, e que é ela quem deve deliberar e tomar decisões seguindo seu próprio plano de vida e ação, embasadas em crenças, aspirações e valores próprios, mesmo quando estes divirjam dos valores dos profissionais de saúde ou dos dominantes na sociedade6. (sem grifos no original)

Tendo em vista o pluralismo religioso, cabe agora passar ao estudo da proteção conferida pela Constituição Federal com relação ao direito à liberdade religiosa.

1. 2 Proteção constitucional quanto à liberdade religiosa

Antes de abordar os artigos constitucionais em que tratam especificamente do direito à liberdade religiosa, cumpre assinalar outros dispositivos da Carta Magna igualmente importante na proteção desse direito.

Ao estabelecer que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito e apontar a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político como seus fundamentos, a Constituição assegura a proteção dos direitos inerentes a todo indivíduo. Ora o direito à liberdade de religião, incluindo a escolha de não ter uma religião, é um direito para lá de intrínseco ao homem. Como afirma Jorge e Silva Neto, "Sem dúvida, a opção religiosa está tão incorporada ao substrato de ser humano - até, como se verá mais adiante, para não se optar por religião alguma - que o seu desrespeito provoca idêntico desacato à dignidade da pessoa"7.

Assim, todos os indivíduos, qualquer que seja a sua religião, caso seja adotada uma, gozam de proteção já na norma primeira da Carta Magna.

A propósito, insta ressaltar que se procura entender hoje a cidadania como um conceito em constante construção, amplo e vinculado à realização de direitos humanos, não obstante permaneça na teoria jurídica dominante no Brasil um conceito de cidadania reduzido ao exercício dos direitos políticos dos indivíduos, como averigua Cesar. São suas palavras:

Acesso à educação, saúde e alimentação dignas, participação real nas decisões políticas, meio ambiente equilibrado, pleno emprego, ausência de qualquer tipo de discriminação , dentre muitos outros, são atualmente elementos fundantes de um amplo e dinâmico conceito de cidadania , em constante construção. (sem grifo no original) 8 .

Aludida por Cesar, Andrade afirma que é imprescindível conceber:

a cidadania como dimensão ampla de participação social e política e através da qual a reivindicação, o reconhecimento e o exercício dos direitos humanos, instituídos e Page 5 instituintes, se exteriorizam enquanto processo histórico, busca-se romper com a dicotomia liberal homem / cidadão, através de uma unificação de temáticas que permita pensar os direitos humanos como núcleo da dimensão da cidadania e o problema de sua (ir)realização como problema relativo à construção da cidadania, numa perspectiva política em sentido amplo9. (sem grifo no original)

Ressalte-se quanto ao terceiro fundamento apontado do Estado brasileiro, o pluralismo político, ele não se restringe ao pluralismo partidário. O pluralismo político é "gênero do qual este [pluralismo partidário] é espécie; este encerra um significado bem mais restrito em relação àquele"10. Aliás, o termo político não pode ser reduzido à partido porque, como assevera Pacheco,

político (de polis) significa a organização da cidade e, mais ainda, as diferentes demandas e interesses legítimos que concorrem para a sua organização, incluindo-se aí, as diferentes expressões dos mais variados grupos sociais que compõem o Estado (a pólis)11. (sem grifos no original)

Essa é a uma interpretação possível e adequada para o dispositivo art. 1º, V, da Constituição Federal. Ora, o partido é apenas uma forma de manifestação na política. O pluralismo político "significa, em qualquer análise, por mais fechada que seja, a expressão da pólis, da cidade, da sociedade"12.

No mesmo sentido é o entendimento de Jorge e Silva Neto, que defende que o fundamento do Estado brasileiro atinente ao pluralismo político também conduz à concretização da liberdade religiosa. Seus dizeres são claros:

porque pluralismo político não deve, em primeiro lugar, ser confundido com pluripartidarismo - princípio vinculado à organização político-partidária...

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