Crédito de ICMS e 'crédito de indébito tributário': consequências jurídicas dessa distinção

AutorPaulo de Barros Carvalho
CargoProfessor Emérito e Titular da PUC/SP e da USP
Páginas7-21

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1. Considerações introdutórias

Sabemos que a ordem jurídica brasileira se apresenta como um sistema de normas, concebido pelo ser humano para motivar e alterar a conduta no seio da sociedade. Ordenadas na forma de sistema as normas jurídicas são construídas pelo intérprete segundo seu princípio unificador: a Constituição da República. Fundamento último de validade semântica de toda unidade normativa, está na Constituição o conteúdo de base de toda regra positivada.

As normas de direito posto, por seu turno, são unidades que, ao juridicizar em fatos sociais (entre eles, os naturais que interessem de algum modo à sociedade), fazem irromper relações jurídicas, no seio das quais aparecem os direitos subjetivos e os deveres correlatos. Daí dizer-se que a incidência da regra faz nascer o vínculo entre sujeitos de direito, por força da imputação normativa. E

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a norma tributária não refoge desse quadro de atuação, que é universal, valendo para todo espaço e para todo o tempo histórico.

Tecnicamente, interessa sublinhar que o fenômeno da incidência requer, por um lado, norma jurídica válida e vigente; por outro, realização de evento juridicamente vertido em linguagem, que o sistema indique como própria e adequada. Pelo prisma lógico, a incidência jurídica reduz-se a duas operações formais: a primeira, de subsunção ou de inclusão de classes, em que se reconhece uma ocorrência concreta, localizada num determinado ponto do espaço e numa específica unidade de tempo, incluindo-a na classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abstrata; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula normativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale dizer, o fato concreto ocorrido faz surgir uma relação jurídica também determinada, entre dois sujeitos de direito.

Nesta linha, torna-se possível afirmar serem todas as normas jurídicas idênticas em termos estruturais (homogeneidade lógica ou sintática), embora dotadas de conteúdos diferentes (heterogeneidade semântica). Firmando-se nessas premissas é que a Ciência do Direito se apresenta possível e compreensível, demonstrando, em termos objetivos, como são as normas, de que modo se relacionam, que tipo de estrutura constroem e, sobretudo, como regulam a conduta intersubjetiva.

É imperioso adotar essa consciência metodológica, no início do presente estudo, na medida em que não há como alcançar- se uma distinção de tamanha importância - entre "crédito de ICMS" e "crédito de indébito tributário" - e muito menos definir os respectivos efeitos jurídicos, sem que antes estejam claras as bases preliminares da Ciência que se pretende esboçar. E no trato com a mencionada matéria de direito tributário, exegetas da mais alta qualidade perdem-se nas diferentes estruturas norma-tivas que exsurgem de uma única realidade social. Fala-se em regra-matriz de incidência do ICMS, em direito ao crédito, em norma de compensação. E a situação agrava-se no momento em que, por qualquer motivo, na cadeia da não cumulatividade do referido imposto, venha a ser efetuado pagamento de indébito tributário. Somam-se, neste caso, tantas outras normas que, somente quando entendidas em sua complexidade estrutural e contextualizadas ao caso concreto, podem ser ordenadas na forma que o direito positivo bem as programou. Desse ponto de vista, considero imprescindível um estudo mais atilado das situações de indébito tributário na sistemática do ICMS, buscando ressaltar a indiscutível presença dos princípios da legalidade e tipicidade tributária a cada momento da positivação da regra jurídica.

2. Algumas palavras sobre o conceito de "relação jurídica"

O objetivo primordial do direito é ordenar a vida em sociedade, disciplinando o comportamento dos seres humanos, nas relações intersubjetivas. Tomando por base esse caráter eminentemente instrumental do ordenamento jurídico, é curioso notar que o único meio de que dispõe, para alcançar suas finalidades precípuas, é a relação jurídica, no contexto da qual emergem direitos e deveres correlatos, pois é desse modo que se opera a regulação das condutas.

É incontestável a importância que os fatos jurídicos assumem no quadro sistemático do direito positivo, pois, sem eles, jamais apareceriam direitos e deveres, inexistindo possibilidade de regular a convivência dos homens, no seio da comunidade. Mas, sem desprezar esse papel fundamental, é pela virtude de seus efeitos que as ocorrências factuais adquirem tanta relevância. Tais efeitos estão prescritos no consequente da norma, irradiando-se por via de relações jurídicas. Isso nos permite dizer, com inabalável convicção, que o prescritor normativo é o dado por excelência da realização do direito, porquanto é precisamente ali que está depositado o instrumento da sua razão existencial.

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A expressão "relação jurídica", como tantas outras empregadas no discurso jurídico, prescritivo ou descritivo, experimenta mais de uma acepção. É relação jurídica o liame de parentesco entre pai e filho, o laço processual que envolve autor, juiz e réu, bem como o vínculo que une credor e devedor, com vistas a determinada prestação. Iremos nos ocupar dessa terceira espécie, que nas normas jurídicas atua decisivamente.

Para a Teoria Geral do Direito, "relação jurídica" é definida como o vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação. Em consequência, para que se instaure um fato relacional, vale dizer, para que se configure o enunciado pelo qual irrompe a relação jurídica, são necessários dois elementos: o subjetivo e o prestacional. No primeiro, subjetivo, encontramos os sujeitos de direito postos em relação: um, no tópico de sujeito ativo, investido do direito subjetivo de exigir certa prestação; outro, na posição passiva, cometido do dever subjetivo de cumprir a conduta que corresponda à exigência do sujeito pretensor. Ambos, porém, necessariamente sujeitos de direito. Nada altera tratar-se de pessoa física ou jurídica, de direito público ou de direito privado, nacional ou estrangeira.

Ao lado do elemento subjetivo, o enunciado relacional contém uma prestação como conteúdo do direito de que é titular o sujeito ativo e, ao mesmo tempo, do dever a ser cumprido pelo passivo. O elemento prestacional fala diretamente da conduta, modalizada como obrigatória, proibida ou permitida. Entretanto, como o comportamento devido figura em estado de determinação ou de determinabilidade, ao fazer referência à conduta terá de especificar, também, qual é seu objeto (pagar valor em dinheiro, construir um viaduto, não se estabelecer em certo bairro com particular tipo de comércio, etc.). O elemento prestacional de toda e qualquer relação jurídica assume relevância, precisamente, na caracterização da conduta que satisfaz o direito subjetivo do qual está investido o sujeito ativo, outorgando o caráter de certeza e segurança de que as interações sociais necessitam. É nesse ponto que os interessados vão ficar sabendo qual orientação devem imprimir às respectivas condutas, evitando a ilicitude e realizando os valores que a ordem jurídica instituiu.

Todo e qualquer vínculo jurídico apresenta essa composição sintática: liame entre pelos menos dois sujeitos de direitos, voltados a um objeto prestacional. Apenas pela observação do conteúdo semântico das relações jurídicas é que estas podem ser distinguidas.

2. 1 Relação jurídica tributária e relação de débito da Fazenda Pública

A definição do conceito de "relação jurídica tributária" encontra-se vinculada ao conceito de direito positivo tributário, o qual, por sua vez, consiste no complexo de normas jurídicas válidas que se referem, direta ou indiretamente, ao exercício da tributação: instituição, fiscalização e arrecadação tributária. Considerada em seu sentido estrito, "obrigação tributária" é o vínculo abstrato em que uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de prestação de cunho patrimonial, decorrente da aplicação de norma jurídica tributária (art. 3º do CTN).

Surgida a obrigação tributária mediante a aplicação da respectiva regra-matriz de incidência e consequente linguagem jurídica competente, nasce, simultaneamente, o crédito tributário. Trata-se de elemento indissociável da obrigação de pagar tributo, consistente no direito subjetivo de que é possuidor o sujeito ativo.

Paralelamente a essa espécie de relação obrigacional, identificamos, no ordenamento brasileiro, o surgimento de liames em que a Fazenda Pública figura no polo oposto,

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assumindo a posição de sujeito passivo. É a chamada "relação de débito da Fazenda Pública", cujo nascimento pode decorrer de: (i) recolhimento indevido ou a maior de importância pecuniária a título de tributo;

(ii) prática de fato jurídico que faz nascer relação de crédito para o contribuinte; ou (iii) contrato...

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