Crédios previdenciários em face de acordos celebrados após a sentença trabalhista

AutorPatrícia Pinheiro Silva
CargoBacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia
Páginas180-195

Page 181

1. Introdução

Desde maio de 2007, vigora no país a Lei n.
11.457/07, que alterou diversos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho. Notadamente, foi incluído pela referida Lei o § 6º ao art. 832 da Lei consolidada, que assim preceitua: “o acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença ou após a elaboração dos cálculos de liquidação de sentença não prejudicará os créditos da União”.

Nitidamente, com este parágrafo, visou o legislador a acabar com uma celeuma doutrinária e jurisprudencial existente até então. Isto porque, a magistratura e os doutrinadores trabalhistas discutiam se os acordos celebrados após o trânsito em julgado de sentenças proferidas na Justiça do Trabalho, fossem estas homologatórias ou condenatórias, teriam ou não aptidão para alterar (ou até mesmo aniquilar) a base de cálculo de incidência das contribuições previdenciárias.

Nessa linha, inúmeros tribunais que anterior-mente pugnavam pela possibilidade de alteração da referida base imponível, passaram a adotar entendimento diametralmente oposto, para determinar a incidência tributária sobre as verbas salariais deferidas em sentença transitada em julgado, não sobre as parcelas constantes no acordo posteriormente celebrado.

Quanto ao tema, salutar é a transcrição de trecho do voto proferido pela desembargadora Elisa Amado do TRT da 5a Região1:

“Assim, embora anteriormente este órgão julgador tenha firmado o posicionamento no sentido de que a inclusão ou exclusão de quaisquer das parcelas da inicial no objeto do acordo é uma faculdade das partes acordantes, que podem transacionar para reduzi-las e até mesmo renunciá-las, pelo que o desconto previdenciário só deve incidir sobre as parcelas de natureza salarial efetivamente recebidas; mudamos nosso entendimento, quando a homologação se deu posteriormente à vigência da lei em destaque, para concluir que, por expressa determinação legal, qual seja, o parágrafo sexto do art. 832 da CLT, introduzido pela Lei n. 11.457/2007, as partes não podem, em acordo celebrado após sentença transitada em julgado, transacionar acerca das parcelas deferidas na sentença de forma que interfira nos créditos da Autarquia Federal.” (original sem grifos)

Permissa venia, não se pode corroborar com esta nova postura adotada pelos tribunais, pelo que se passará a propor a verdadeira interpretação que deve ser dada a este novo dispositivo, de modo a que o mesmo não seja reputado por inconstitucional.

Assim, o presente estudo terá enfoque, especificamente, sobre a cizânia doutrinária que paira sobre a possibilidade de os litigantes, em sede de processo trabalhista, celebrarem acordos após o trânsito em julgado da sentença, cujo conteúdo exclua, no todo ou em parte, os créditos previdenciários pertencentes à União. Para tanto, serão feitos cotejos entre as legislações atuais e pretéritas, bem como buscadas as fontes doutrinárias e jurisprudenciais que tratam da matéria.

2. Interpretação do § 6o do art 832 da CLT

Como tratado linhas acima, os tribunais vêm adotando postura que vai de encontro aos princípios basilares do Direito na interpretação do novel parágrafo sexto do art. 832 da Lei consolidada, o que tem conduzido a verdadeiras injustiças e enriquecimento ilícito do Fisco.

Page 182

Com efeito, a hermenêutica do Sistema Jurídico leva a defender-se, por ora, que os créditos previdenciários deverão ser efetivamente protegidos, como, aliás, ocorre com qualquer direito juridicamente tutelado.

Destarte, inconcebível seria que se autorizasse a disposição pelos litigantes, ainda que em sede de processo trabalhista e por meio da conciliação judicial, dos direitos ou créditos de terceiros, no caso, da Fazenda Pública, em detrimento de todo o interesse público envolvido na questão.

É neste sentido que “o acordo celebrado após o trânsito em julgado da sentença ou após a elaboração dos cálculos de liquidação de sentença não prejudicará os créditos da União”.

Até este ponto, não há divergência na concepção do dispositivo em comento. Contudo, a hermenêutica que se passará a defender, talvez por sua obviedade e simplicidade, não tem sido propugnada com frequência pelos juristas pátrios.

De fato, a única interpretação conforme o Ordenamento Jurídico brasileiro que deve ser dada a este preceito é aquela já garantida pelo próprio Código Tributário Nacional, em seu art. 123, segundo o qual convenções particulares não podem ser opostas à Fazenda Pública.

Não há nada de tão inovador, portanto, na norma em questão, já que a mesma apenas objetivaria evitar que as partes convencionassem a não incidência tributária, quando ocorrido o fato gerador da obrigação tributária. Tal dispositivo decorre da própria regra geral de Direito de que não é dado às partes se evadirem de normas de ordem pública de aplicação cogente, sob pena de restar configurada a evasão fiscal.

Observe-se, ainda, que tal proteção aos créditos previdenciários se dará não apenas após o trânsito em julgado da sentença trabalhista, como preconiza a norma, mas a qualquer tempo, dentro ou fora do processo judicial, já que é regra básica do Direito a indisponibilidade de créditos de terceiros, independentemente do momento em que se dê.

Contudo, o que ora se defende, e nisso se destoa da maioria dos juristas, é que tal proteção aos créditos fiscais apenas seria deflagrada após a devida constituição deste direito, com o adimplemento da obrigação trabalhista. Isto porque em momento anterior à satisfação dos créditos do trabalhador somente há mera expectativa de direitos da Previdência, que não poderia constituir óbice à liberdade negocial das partes, como alguns têm defendido de maneira equivocada.

Desta forma, é perfeitamente lícito o acordo celebrado pelos litigantes após a prolação da sentença trabalhista, pelo que as contribuições previdenciárias apenas deverão incidir sobre as verbas de caráter salarial acordadas e devidamente adimplidas, ainda que haja supressão da base de cálculo em relação à sentença.

Em que pese, notoriamente, não ter sido esta a mens legislatoris (mormente quando se tem em vista a nova redação do art. 43, § 5º, da Lei n. 8.212/912), não se poderia dar guarida à vontade dos representantes do povo, quando esta se encontra em confronto com todo o Sistema Constitucional posto. Pelo que, não há outra interpretação a ser dada ao preceito em estudo, senão a que ora se propõe.

O entendimento ora esposado é corroborado por inúmeros fundamentos jurídicos que serão trabalhados mais detidamente nos tópicos a seguir.

2.1. Das razões constitucionais

Como é sabido, o Ordenamento Jurídico brasileiro está calcado na supremacia das normas constitucionais, bem como na presunção de constitucionalidade das leis editadas pelo Poder Público competente. Destarte, por um imperativo lógico, na interpretação de uma norma com várias significações possíveis, deve-se dar preferência ao sentido adequado à Constituição.

Page 183

Entender-se, como a maioria da doutrina e da jurisprudência tem feito, que o dispositivo em questão visou a resguardar os créditos da União, formados desde a prolação da sentença trabalhista, constitui verdadeiro vilipêndio às normas e princípios constitucionais.

2.1.1. Hipótese de incidência tributária na literalidade da Constituição

A Carta Magna de 88 determina que a competência trabalhista para executar as contribuições sociais restringe-se àquelas previstas nos arts. 195, I, a, e II, decorrentes das sentenças que forem nesta seara proferidas.

A seu turno, o art. 195 deixa claro que a incidência tributária somente se procederia sobre as parcelas salariais efetivamente pagas ou creditadas ao trabalhador, ainda que decorrentes de sentença condenatória ou acordo homologado.

Assim, a materialidade preconizada pela Constituição abrange, sob a perspectiva do tomador de serviços, o ato de pagar ou creditar salários e demais rendimentos do trabalho. Em contrapartida, o diploma constitucional deixa implícito como aspecto material a ser observado pelo legislador infraconstitucional quando da criação do tributo, a conduta de auferir tais salários ou demais rendimentos do trabalho.

O texto constitucional, portanto, traçou os limites dentro dos quais poderá o legislador atuar, fixando, ainda que genericamente, a materialidade da norma tributária. Cumpre transcrever, neste aspecto, as observações de Roque Carrazza3 ao discorrer acerca dos “arquétipos” constitucionais:

“A Constituição, ao discriminar as competências tributárias, estabeleceu — ainda que, por vezes, de modo implícito e com certa margem de liberdade para o legislador — a norma-padrão de incidência (o arquétipo, a regra-matriz) de cada exação. Noutros termos, ela apontou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo possível e a alíquota possível, das várias espécies e subsespécies de tributos. Em síntese, o legislador, ao exercitar a competência tributária, deverá ser fiel à norma-padrão de incidência do tributo, pré-traçada na Constituição. O legislador (federal, estadual, municipal ou distrital), enquanto cria o tributo, não pode fugir deste arquétipo constitucional.” (grifos do autor)

Visando à regulamentação das disposições constitucionais, a Lei n. 8.212/91, que instituiu o Plano de Custeio de Previdência, dispôs acerca das contribuições sociais a serem recolhidas pelas empresas e empregadores domésticos, que incidiriam sobre a remuneração paga ou creditada aos segurados a seu...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT