Countermajoritarian, Representative, and Enlightened: The roles of constitutional tribunals in contemporary democracies/Contramajoritario, Representativo e Iluminista: Os papeis dos tribunais constitucionais nas democracias contemporaneas.

AutorBarroso, Luis Roberto
CargoTexto en portugues - Ensayo
  1. Introducao: o Estado da arte do Direito Constitucional Contemporaneo (1)

    1. O objeto do presente ensaio

      O ensaio que se segue cuida de tres temas distintos, mas conexos. O primeiro deles e a ascensao politica e institucional do Poder Judiciario no mundo contemporaneo, marcada por fenomenos como a judicializacao, o ativismo judicial e o esforco de justificacao democratica da jurisdicao constitucional. O segundo tema versa a tormentosa questao das relacoes entre direito e politica, com a analise da concepcao tradicional, que acreditava na separacao plena, e do modelo real, em que as superposicoes entre ambos se revelam inevitaveis. Decisoes de tribunais nao se baseiam apenas no material juridico, mas sao influenciadas, em maior ou menor medida, por fatores extrajudiciais, subjetivos e objetivos. O terceiro e principal objeto da presente investigacao e a demonstracao de que Supremas Cortes e Cortes Constitucionais, no mundo democratico, desempenham tres papeis diversos: contramajoritario, quando invalidam atos dos outros Poderes; representativo, quando atendem demandas sociais nao satisfeitas pelas instancias politicas; e iluminista, quando promovem determinados avancos sociais que ainda nao conquistaram adesao majoritaria, mas sao uma imposicao do processo civilizatorio.

    2. Um olhar de fora

      No desenvolvimento do argumento, sao utilizadas diversas referencias colhidas na experiencia constitucional americana. Lanco sobre ela, porem, um olhar de fora, de um observador externo, situando-a dentro do contexto mais amplo do constitucionalismo contemporaneo. O mundo do direito constitucional vive um momento de efervescencia, que inclui intensa interlocucao entre academicos e juizes de diferentes paises, o uso eventual de doutrina e precedentes estrangeiros por tribunais, o florescimento de cortes constitucionais e internacionais, assim como a universalizacao do discurso dos direitos fundamentais, para citar alguns aspectos do fenomeno. Fala-se em um constitucionalismo global (2). A expressao nao se refere, ao menos na quadra atual, a instauracao de uma ordem juridica mundial unica, com instituicoes supranacionais para faze-la cumprir. Esta nao e uma possibilidade real a vista. Vivese, porem, um momento de migracao de ideias constitucionais (3), de cosmopolitanismo (4), de um discurso transnacional (5). Ha um patrimonio comum compartilhado pelos paises democraticos que se expressa em uma gramatica e em uma semantica que os aproximam em valores e propositos (6). O pacote basico do constitucionalismo contemporaneo contem muitas ideias, conceitos e instituicoes que tiveram sua origem na pratica dos Estados Unidos (7). Ao circularem pelo mundo, no entanto, foram adquirindo novas cores e sabores, incorporando sotaques e agregando valores (8). O ensaio que se segue analisa alguns processos tipicos da atualidade do direito constitucional, sob uma perspectiva que nao e local ou particular, mas que procura incorporar o conjunto de concepcoes que fizeram do constitucionalismo um projeto global (9).

    3. Americanizacao e globalizacao do direito constitucional

      Duas das primeiras Constituicoes escritas do mundo--a americana, de 1787, e a francesa, de 1791 (10)--deram origem a dois modelos de constitucionalismo bastante diferentes. No modelo frances, que se irradiou pela Europa continental, a Constituicao tinha uma dimensao essencialmente politica, nao comportando aplicacao direta e imediata pelo Poder Judiciario (11). O grande principio era o da supremacia do Parlamento, sendo que as leis nao eram passiveis de controle de constitucionalidade. Ja o constitucionalismo americano, ao menos desde de Marbury v. Madison (12), julgado em 1803, caracterizou-se pelo reconhecimento de uma dimensao juridica a Constituicao, com a possibilidade de sua aplicacao direta e imediata por todos os orgaos do Poder Judiciario (13). O grande principio aqui, desde o comeco, foi o da supremacia da Constituicao, em que juizes e tribunais, e especialmente a Suprema Corte, podiam exercer o controle de constitucionalidade e, consequentemente, deixar de aplicar as normas que considerassem incompativeis com a Constituicao. Antes de meados do seculo passado, supremas cortes ou cortes constitucionais com poderes para aplicar diretamente a Constituicao e invalidar leis com ela incompativeis eram uma raridade (14).

      Apos a Segunda Guerra Mundial, o modelo americano prevaleceu na maior parte do mundo democratico (15). Embora a formula dos tribunais constitucionais, adotada na Europa, tenha estrutura e procedimentos diferentes do americano, o conceito subjacente e o mesmo: a Constituicao e dotada de supremacia e os atos dos outros Poderes que sejam incompativeis com ela podem ser invalidados por um tribunal. Como se sabe, sob inspiracao de Hans Kelsen, a Constituicao da Austria, de 1920, previu um orgao especifico, fora da estrutura ordinaria do Poder Judiciario, para desempenhar o controle de constitucionalidade. Porem, foi com a implantacao do Tribunal Constitucional Federal alemao, em 1951, que este formato de prestacao de jurisdicao constitucional se difundiu pelo mundo. Hoje em dia, mais de 80% dos paises atribuem a cortes supremas ou a tribunais constitucionais o poder de invalidar legislacao incompativel com a Constituicao (16). Tambem no seu conteudo, muitas Constituicoes contemporaneas se aproximam, na essencia, do padrao concebido na Filadelfia, em 1787. De fato, este e o estado da arte do direito constitucional na maior parte dos paises democraticos: Constituicoes escritas que sao dotadas de supremacia, estabelecem a separacao de Poderes, definem direitos fundamentais e preveem o controle de constitucionalidade, a cargo de uma Suprema Corte ou de um Tribunal Constitucional. Esta relativa homogeneidade nao encobre, e certo, a perda de influencia da Constituicao americana (17), as distincoes ideologicas entre constituicoes contemporaneas (18), nem tampouco as discrepancias na interpretacao de dispositivos identicos por tribunais diferentes (19).

  2. A Ascensao do Judiciario, Judicualizacao e Ativismo Judicial

    1. A judicializacao da vida

      Simultaneamente a expansao da jurisdicao constitucional no mundo, verificou-se, igualmente, uma vertiginosa ascensao politica e institucional do Poder Judiciario. Sobretudo nos paises de tradicao romano-germanica, juizes e tribunais deixaram de ser uma especie de departamento tecnico especializado do governo para se transformarem em um verdadeiro Poder, que em alguma medida disputa espaco com os demais (20) e atua com grande importancia na governanca nacional. (21) Ha causas de naturezas diversas para o fenomeno. A primeira delas foi o reconhecimento, apos a 2a Guerra Mundial, da importancia de um Judiciario forte e independente como elemento essencial das democracias modernas, para a protecao dos direitos fundamentais e do Estado de direito. A segunda causa envolve uma certa desilusao com a politica majoritaria, em razao da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Ha uma terceira: atores politicos, muitas vezes, preferem que o Judiciario seja a instancia decisoria de certas questoes polemicas, em relacao as quais exista desacordo moral razoavel na sociedade. Com isso, evitam o proprio desgaste na deliberacao de temas divisivos, como unioes homoafetivas, aborto ou mesmo descriminalizacao de drogas leves, como a maconha.

      Mas ha tambem razoes estrategicas de natureza politica para o fortalecimento das Cortes Constitucionais e Supremas Cortes ao redor do mundo, especialmente nas ultimas decadas. Cientistas politicos tem oferecido explicacoes para o curioso interesse de elites politicas empoderarem Cortes Constitucionais e Supremas Cortes em momentos constituintes. Duas teorias geraram debates mais intensos. Uma delas, fundada em relevante estudo de Cortes do Leste Asiatico feito por Tom Ginsburgh, e a de que o fortalecimento das Cortes, sempre associada ao entrincheiramento de direitos e liberdades fundamentais nas Constituicoes, e feito como uma forma de "seguro politico" (22). Elas seriam uma solucao para o problema da incerteza politica sobre o impacto distributivo futuro de novas instituicoes e direitos. Outra explicacao e oferecida por Ran Hirschl, que afirma que o fortalecimento desses tribunais e uma forma encontrada pelas elites de preserver sua hegemonia em um futuro incerto (23). Adiante se voltara ao ponto. Por ora, o que se pretende enfatizar e que esta posicao proeminente assumida por juizes e tribunais deu lugar ao fenomeno da judicializacao.

      Judicializacao significa que questoes relevantes do ponto de vista politico, social ou moral estao sendo decididas, em carater final, pelo Poder Judiciario. Trata-se, como intuitivo, de uma transferencia de poder para as instituicoes judiciais, em detrimento das instancias politicas tradicionais, que sao o Legislativo e o Executivo. Essa expansao da jurisdicao e do discurso juridico, embora mais comum em paises como os Estados Unidos, constitui uma mudanca drastica no modo de se pensar e de se praticar o Direito no mundo romanogermanico (24). Fruto da conjugacao de circunstancias diversas (25), o fenomeno e mundial, alcancando ate mesmo paises que tradicionalmente seguiram o modelo ingles--a chamada democracia ao estilo de Westminster--, com soberania parlamentar e ausencia de controle de constitucionalidade (26). Na America Latina o fenomeno tambem e acentuado (27). Exemplos numerosos e inequivocos de judicializacao ilustram a fluidez da fronteira entre politica e justica no mundo contemporaneo, documentando que nem sempre e nitida a linha que divide a criacao e a interpretacao do Direito. Os precedentes podem ser encontrados em paises diversos e distantes entre si, como Canada (28), Estados Unidos (29), Israel (30), Turquia (31), Hungria (32) e Coreia (33), dentre muitos outros. Na America Latina34, o fenomeno e particularmente intenso no Brasil (35) e na Colombia (36). Muitas vezes, decisoes judiciais provocam reacoes intensas no...

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