O corpus iuris civilis e a mudança no fundamento de validade do direito

AutorDaniela Mesquita Leutchuk de Cademartori/Sergio Urquhart Cademartori
CargoDoutora em Direito do Estado e Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFSC/Doutor e Mestre em Direito pela UFSC. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito (CPGD) da UFSC
Páginas75-97

Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori1

Sergio Urquhart Cademartori2

Page 75

1 Introdução

O gesto do imperador romano Justiniano, em 529, de ordenar a reunião de todo o direito romano em um único documento, faz com que as normas percam seu caráter de origem social, fundando a sua validade, a partir de então, na vontade do príncipe. Se anteriormente, o direito romano podia ser caracterizado como oriundo da sociedade, gradualmente elaborado de acordo com os mores, através da jurisdição pretoriana (com seus resultados consagrados no Edictum perpetuum), encontramos no Codex (uma das partes daquele documento) um novo princípio: quod principi placuit legis habet vigorem. Este, por sua vez, tem como corolário aquele de que solusPage 76 princeps potest facere leges: no desenvolvimento histórico sucessivo, o direito romano passa a ser um direito imposto pelo Estado, ou pelo Imperador.

Para Norberto Bobbio, a compilação de Justiniano - somente denominada de Corpus Iuris Civilis a partir do século XVI - é um precedente do processo de monopolização da produção jurídica por parte dos Estados modernos. Muito embora este autor mencione a possibilidade de traçar este paralelo, cabe salientar que ele diz respeito ao tema dos fundamentos de validade do direito, eis que são processos distintos, inaugurando direitos cujo significado filosófico, social e jurídico são distintos.

A verdade é que o Corpus Iuris Civilis apresentou historicamente múltiplos significados. Só a título de lembrança cabe referir, por exemplo, ao seu papel na recuperação do direito romano a partir do final da Idade Média. No entanto, apesar das referências a estes significados surgidas no texto, aqui o objetivo é discutir a mudança no fundamento de validade do direito, ou de legitimação, com vistas a traçar um paralelo com o processo de monopolização jurídica realizado pelos Estados Modernos.

De outro lado, há que se salientar que em Roma o Direito como objeto fundamental de estudo é tomado pela primeira vez. Ali, surgem os rudimentos de alguma coisa similar ao que hoje conhecemos como ciência do Direito, mesmo que, daí em diante, até o fim do século XIX, a ciência do Direito seja predominantemente ciência do Direito privado.

Tendo em vista esse pressuposto, bem como os objetivos deste trabalho, volta-se, inicialmente, para uma análise das sucessivas formas de governo e das diferentes fases do direito antes de abordar-se as fontes do direito romano propriamente dito, finalizando com uma abordagem do fenômeno da monopolização da produção judiciária.

2 Fundamento de validade e fontes do direito

Nas teorias jurídicas tradicionais, a validade de uma norma diz respeito ao pertencimento dessa a um ordenamento jurídico por ter sido produzida por um órgão competente e conforme um procedimento regular. Já a eficácia, relaciona-se com duas situações: o efetivo comportamento dos destinatários em relação à norma posta e a sua aplicação pelos tribunais em caso de descumprimento por parte daqueles. (CADEMARTORI, 1999, p. 44)

Levando em conta a existência de uma enorme diversidade de abordagens dessa relação, é saudável evitar definições que instauram uma confusão terminológica. Com efeito, validade e eficácia apresentam-se, dependendo do autor, numa grande variedade de relações. Veja-se, por exemplo, e em homenagem à sofisticação de seu estudo, o enfoque dado por Miguel Reale a essas categorias: para ele, "A validade de uma norma de direito pode ser vista sob três aspectos: o da validade formal ou técnico-jurídica (vigência), o da validade social (eficácia ou efetividade) e o da validade ética (fundamento)." (REALE, 1974, p. 115)

A validade formal ou técnico-jurídica (vigência, para Reale) pressupõe o exame da competência dos órgãos e compreende a conjugação de dois requisitos: ter sido a norma emanada de um órgão competente e este último possuir competência ratione materiae. A estes dois critérios, Reale acrescenta ainda um terceiro requisito: a necessidade de o poder ser exercido com obediência as exigências legais, isto é a "legitimidade do procedimento" (na técnica do Direito norte-americano, due process of law). (REALE, 1974, p. 120)

Todavia, em determinados casos, por contrariarem tendências e inclinações dominantes no seio da coletividade, as normas só conseguem ser cumpridas do modo compulsório. Nesses casos, elas possuem validade formal, e não a eficácia espontânea da comunidade. "A eficácia se refere, pois, à aplicação ou execução da norma jurídica, ou por outras palavras, é a regra jurídica enquanto momento da conduta humana. A sociedade deve viver o Direito e como tal reconhecê-lo." (REALE, 1974, p. 124)Page 77

O costume é um exemplo de regra jurídica socialmente eficaz. Quando o costume é reconhecido passa a adquirir validade formal.3

O autor ainda acrescenta um terceiro aspecto a compreender a validade de uma norma, seu fundamento.

O Direito, consoante outra lição de Stammler, deve ser, sempre, 'uma tentativa de Direito justo', por visar à realização de valores ou fins essenciais ao homem e à coletividade. O fundamento é o valor ou fim objetivado pela regra de direito. É a razão de ser da norma, ou 'ratio juris'. Impossível é conceber-se uma regra jurídica desvinculada da finalidade que legitima sua vigência e eficácia. (REALE, 1974, p. 127)

Vigência, eficácia e fundamento comprovam a conhecida tese do autor da estrutura tridimensional do direito: a vigência com referência à norma; a eficácia com referência ao fato e o fundamento expresso no valor.

Assim, parece mais conveniente, para um exame mais acurado da mudança operada pelo Código justinianeu no sistema de fontes, lançar mão de travejamentos categoriais mais simples e operativos, tais como o de Bobbio, para quem a validade diz respeito ao cumprimento de três condições, a saber: a) se uma norma foi posta em vigor por órgão competente e através do procedimento competente; b) não foi revogada; e c) não contraria norma superior. Já a eficácia diz respeito, como já referido, ao efetivo cumprimento e/ou efetiva aplicação da sanção prevista na norma em caso de seu descumprimento (BOBBIO, 2001, p. 46).

Note-se, na primeira das condições acima, a estreita correlação entre as fontes das quais dimanam as normas e a sua validade. De fato, se, como quer Bobbio, fontes do direito devem ser entendidas como atos ou fatos dos quais o ordenamento faz depender a produção de normas jurídicas válidas (BOBBIO, 1989, p. 45), então o problema das fontes torna-se crucial na determinação do direito positivo de determinado país e época.

Do exposto, conclui-se que o fundamento de validade (obrigatoriedade) de um ordenamento diz respeito ao poder normativo, o qual apresentará maior grau de eficácia quanto maior o grau de aceitação das normas editadas por ele, o que Hart denomina de "ponto de vista interno"4. Este é nada mais do que a assunção, por parte de cidadãos e autoridades, das normas de um determinado ordenamento como máxima interna para o agir.

Tal relação entre o ordenamento (isto é, a autoridade normativa) e o súdito/receptor das normas, encaminha diretamente à questão da legitimidade, qual seja a justificação interna da relação mando/obediência, se assumida a conceituação weberiana (BOBBIO, 2000, p.140).

Com efeito, se para Weber o Estado se apresenta como um instituto político de atividade contínua, na medida em que seu corpo administrativo mantém com êxito a pretensão ao monopólio da violência física legítima (WEBER,1984,p.45), então a categoria "legitimidade" é fundamental para obter-se uma maior compreensão do fenômeno estatal. Em decorrência disso, tal categoria apresenta capacidade suficiente para lançar luz sobre o significado da mudança no fundamento de validade ocorrida com a compilação de Justiniano.

Veja-se: para Max Weber, o Estado e as demais associações políticas que o precederam é uma relação de domínio de homens sobre homens com base em um meio de coação considerado legítimo. É preciso que os homens dominados se submetam a autoridade dos que dominam. As razões para a submissão só podem ser compreendidas quando são conhecidos "os motivos internos de justificação e os meios externos nos quais a dominação se apóia" (WEBER, 1984. p. 1057).

Através das razões da obediência, ou legitimidade, o poder (Macht) transforma-se em dominação (Herrschaft). Dominação e força diferenciam-se porque conseguem obter a obediência dos sujeitos por razões distintas: pela adesão ou pela própria força.

Max Weber constata a existência histórica de vários princípios de legitimidade nas sociedades. Suas observações são sintetizadas na sua famosa tripartição de tipos puros de dominação:

Primeiro, a autoridade do 'passado', do costume consagrado por uma validez imemorial e pela atitude habitual de observância: é esta a dominação 'tradicional' tal como a exerceram o patriarca e o príncipe patrimonial de todos os tipos. Logo, a autoridade do dom de graça pessoal extraordinário (carisma), ou da devoção totalmente pessoal e a confiança pessoal em revelações,Page 78 heroísmo e outras qualidades de caudilhagem do indivíduo: dominação 'carismática', tal como a exercem o profeta ou - no terreno político - o príncipe guerreiro escolhido ou o condutor plebiscitário, o grande demagogo e chefe político de um partido. E, finalmente, a dominação em virtude da 'legalidade', ou seja em virtude da crença na...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT