Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women/ Corporeidades silenciadas: reflexoes sobre as narrativas de mulheres violadas.

AutorBeltrao, Jane Felipe

De traducoes olvidadas e dialogos "surdos"

No ensaio que hoje pode ser considerado classico para o que se convencionou chamar Antropologia Juridica ou Antropologia do Direito (2), Geertz (2013) enuncia que o Direito e construido a luz de saberes e artesanatos locais, isto e, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde "funciona." Segundo o autor, ha diversos sentidos de direito e justica--o que ele denomina de sensibilidades juridicas--as quais, no contexto contemporaneo, sao obrigadas a conversar, em suas palavras, "... uma iluminando o que a outra obscurece." (2013, p. 237)

De acordo com essa afirmacao, o estudo e a pratica do Direito devem ser feitos por meio da traducao cultural, buscando compreender as sensibilidades juridicas que estao em jogo nas contendas, seja aquelas levadas a justica estatal, seja as que sao discutidas e resolvidas a luz das normas comunitarias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades.

Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indigenas e quilombolas/indigenas e quilombolas mulheres (3) da Amazonia paraense resistem as violencias do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio as situacoes de violencia. Nao se trata aqui de analisar estrategias de movimentos de mulheres indigenas e/ou quilombolas para conseguir alcancar suas reivindicacoes politicas, o que nao deixaria de ser importante objeto de reflexao, mas sim de entender as proprias corporeidades das protagonistas como estrategias de resistencia. Esta ultima, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de historias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agencias, como veremos a seguir.

Temos em conta que esse dialogo entre nocoes de justica nao ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando politicas de homogeneizacao e integracao dos grupos diferenciados a "sociedade nacional." A conversa entre as sensibilidades juridicas no pais ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo juridico subordinado colonial, isto e, de modo a nao reconhecer nocoes de direito que nao sejam as provenientes do Estado.

Quando se pensa em questoes relativas as mulheres etnicamente diferenciadas a questao se complexifica. A promulgacao de leis especificas as mulheres, que consideram a violencia como crime (4), fruto de anos de reivindicacoes e estudos promovidos por organizacoes e coletivos feministas, diz pouco sobre diferencas de ordem cultural, etnica e racial. Diante disso, compreender nocoes de violencia bem como as estrategias de resistencia das protagonistas se impoe.

Os segredos da escuta

Assim, nosso objetivo e refletir sobre as formas de narrar a violencia que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indigenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de traducao etnografica a partir da identificacao das categorias nativas que compoem a enunciacao das interlocutoras, considerando as diferenciadas nocoes de justica presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos as autoras do texto.

Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se da a construcao da corporeidade entre as mulheres indigenas e quilombolas/indigenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como territorio privilegiado de resistencia e luta. A marca do presente trabalho sao as reflexoes que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violencia.

Para os limites da reflexao proposta, e importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos as pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intencao de trabalhar especificamente violencia e violacao de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade--estatal e/ou comunitaria--de oitiva das mulheres em situacao de violencia.

Selecionou-se depoimentos de mulheres indigenas pertencentes aos povos Tembe Tenetehara (5), hoje moradores do municipio de Santa Maria do Para, Xipaya (6) e Kuruaya (7) que vivem no medio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipelago do Marajo, tambem no estado do Para. Destacam-se trajetorias e memorias que marcam de modo indelevel o etnocidio praticado via colonizacao (Beltrao, 2012), que ate o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indigenas e quilombolas via colonialidade. (8) Nesse sentido, e latente na narrativa das interlocutoras a referencia ao processo de expulsao territorial, sequestro de criancas indigenas e quilombolas pela acao missionaria e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocidio, em face da tentativa de homogeneizacao e apagamento das pertencas. Vale, porem, ressaltar que a colonialidade incide de forma especifica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008), se instituiu tambem como colonialidade genero, que instituiu o sistema de genero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e publico/privado, como o padrao. Isso ocultou sistemas de organizacao dos "mundos sexuais" nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluidas e as mulheres exerciam papeis importantes na vida coletiva. Nao tratamos aqui de perscrutar esses sistemas "originais" e nem acreditamos que, hoje, isso seja possivel. Porem, importa ter isso em consideracao para um olhar etnografico mais apurado.

O ponto nevralgico, locus em que os caminhos etnograficos se tornam mais "nebulosos": ter o corpo marcado, como e o caso de indigenas e quilombolas mulheres/mulheres indigenas e quilombolas, pela violencia fisica e sexual, muitas vezes infringida pelos proprios "parentes", ou ainda por pessoas nao indigenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados (9) redobrados na interpretacao de atos e falas que nao sao ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violacao dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, tambem formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos "ouvintes" privilegiadas, considerando a confianca com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultacao das identidades e fato.

O veneno da dor

Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlacao entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressao da dor, e possivel sair da privacidade sufocante que ela produz na vitima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que so e alcancado pela experimentacao do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violencias extremas nao seriam apenas responsaveis pela destruicao de vidas e corpos. Atuam, tambem, na construcao de sujeitos e linguagens da dor. A enunciacao da dor pede, portanto, admissao e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa e a proposta ao fazer antropologico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras.

De acordo com Michael Taussig (1993), a reproducao da imagem dos povos indigenas como selvagens, irracionais e violentos e o que possibilita a propagacao do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estrategia de resistencia e luta dos negros e imperdoavel ao mundo colonial, afinal, os africanos sao equiparadamente considerados, como os indigenas, pessoas despreziveis. Trata-se uma operacao mimetica por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violencia, nao importando se esse imaginario e verdadeiro ou nao. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espacos de morte, nos quais indigenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror e o mediador por excelencia da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminacao presente em nossa sociedade.

O autor afirma ainda que "... as culturas do terror sao nutridas pelo entremesclar do silencio e do mito." (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violencias que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetorias, nossas interlocutoras comecaram a vencer a primeira imposicao do terror, o silencio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitaria, escreveu seu depoimento:

"nao vou falar e tambem nunca escrevi, mas faco [o texto] porque nao consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez nao haja explicacao, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevencao pra que nao possa acontecer com outras mulheres e contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peco que a senhora conte, leve adiante, o massacre nao pode continuar."

Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se a consideracao e em complemento a Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertenca Kuruaya, que narra seu panico no dia da violacao, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que a epoca tinham respectivamente oito anos e dois anos:

"Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite...

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