A constituição e as intervenções corporais no processo penal: Existirá algo além do corpo?

AutorLuis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho
CargoCoordenador acadêmico do Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá, Doutor pela UERJ, Mestre pela PUC-RJ e Juiz de Direito no Rio de Janeiro
Páginas215-242

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“Eis que se revela o ser, na1 transparência do invólucro perfeito”2

I Introdução

A Constituição brasileira de 1988, rompendo o arbítrio imperante após mais de 20 anos de ditadura, consagrou, explícita ou implicitamente, quase todos os direitos e garantias devotados à proteção do cidadão investigado ou acusado em um processo penal, moldando, sem qualquer dúvida, um processo verdadeiramente democrático.

Eventual ausência explícita de um ou outro direito, ou de uma ou outra garantia, acabou superada, indiretamente, por cláusulas gerais presentes no texto constitucional, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, de modo que, no âmbito do Direito Processual Penal, não faria uma falta muito significativa.

Outros direitos e garantias, por outro lado, em que pese o silêncio da Carta brasileira, constam em documentos internacionais aos quais o Brasil aderiu, ingressando, assim, no ordenamento jurídico brasileiro.

Muitos dos direitos e garantias processuais-constitucionais, extraídos direta ou indiretamente, do texto constitucional, contudo, não foram observados logo após a promulgação da Carta pela incapacidade dos operadores do Direito e dos autores de obrasPage 216de processo penal de se despirem do instrumental positivista que ditava que a lei era o centro do ordenamento jurídico e a Constituição apenas um programa que devia ser cumprido na medida em que viria a ser incorporado pelo ordenamento infraconstitucional. Embora com algumas sérias recaídas, essa fase está em vias de superação, de modo que os princípios processuais-constitucionais estão, pouco a pouco, imperando na interpretação do Direito.

Uma dessas garantias constitucionais recai sobre a proteção do corpo humano, enquanto fonte de prova para o processo penal. Muitos dispositivos da Constituição tutelam o corpo do suspeito ou do réu de intervenções arbitrárias e outros destinam-se a proteger a dignidade corporal do condenado.

O objetivo do presente estudo será verificar a extensão que se tem dado à proteção da entidade corporal em sede de processo penal e se essa extensão é justificável ou não. Investigará, também, se a proteção está sendo conferida à entidade corporal, como um fim em si mesmo e independentemente de qualquer outra justificação, ou a outra entidade não corporal – alma, espírito, psiquê, dignidade etc -, ou a ambas, necessária e conjuntamente. Mais precisamente, se busca problematizar se a proteção ao corpo humano ou à parte dele somente se pode justificar na medida em que também se visa a proteger outras entidades não-corporais, ou se proteção é absoluta, não sendo necessário levar em consideração qualquer outra entidade.

Especificando ainda mais o objetivo do estudo: investigar-se-á, por exemplo, se a proibição de extrair a exalação do ar de alguém por meio do etilômetro ou bafômetro, ou o sangue, ou um fio de cabelo, ou a urina, se justificam pela proteção à entidade corporal, tão somente, ou só se justificam se tais intervenções colocarem em risco outras entidades, como a espiritual, a almática, a psíquica, a moral, ou a dignidade da pessoa humana.

Enfim, o que se buscará compreender e revelar são os valores envolvidos na proteção constitucional e convencional que proíbem a utilização do corpo humano como fonte de prova em processo penal.

II As Intervenções Corporais e a Constituição

Inegavelmente, a Constituição brasileira foi extremamente cuidadosa emPage 217proteger não só a esfera corporal do réu3, mas, também, sua intimidade, em sentido geral4.

Tais previsões constitucionais vieram a ser complementadas pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), promulgada pelo Decreto nº 678, de 6/11/1992, que previu o direito de o acusado não depor contra si mesmo5 e pela Lei nº 10.792/2003, que alterou a redação do artigo 186 do Código de Processo Penal6 para assegurar o direito de o réu permanecer em silêncio por ocasião de seu interrogatório, ampliando a proteção que a Constituição destinava somente ao preso, de maneira direta - embora o dispositivo constitucional devesse ser interpretado de maneira mais ampla.

Estes dispositivos configuram a preocupação do constituinte de 1988 e do legislador posterior a 1988 com a incolumidade física do acusado, possivelmente bastante influenciados pela memória relativamente recente, em termos históricos, do que ocorreu durante a ditadura militar que se estendeu de 1964 a 1985, em que a tortura política banalizou-se e acabou alastrando-se por toda a teia do aparelho policial do Estado.

Este conjunto de proteção visa a coibir abusos nas denominadas intervenções corporais, com finalidade de obtenção de prova em processo penal. Segundo Nicolas Gonzales-Cuellar Serrano,7 intervenções corporais são medidas de investigação que se realizam sobre o corpo das pessoas, sem necessidade de obter seu consentimento, e por meio da coação direta, se necessário, com o fim de descobrir circunstâncias fáticas que sejam do interesse para o processo, em relação às condições ou ao estado físico ou psíquico do sujeito, ou com o fim de encontrar objetos nele escondidos. Consistem, por exemplo, na extração de sangue para realização de exame de pareamento cromossômico (DNA), na extração de sangue ou na exalação de ar (etilômetro ou bafômetro) para verificação do nível de álcool no organismo, na coleta de urina, na extração de substâncias contidas debaixo das unhas dos suspeitos (finger scrapings), em cirurgias no próprio corpo da pessoa suspeita, na coleta de impressões digitais, no exame em cavidades do corpoPage 218(ânus, vagina), e que remontam ao direito à intimidade, consagrado no inciso X, do artigo 5º, da Constituição.

Há uma distinção entre intervenções corporais e registros corporais, elaborada na Alemanha, pela qual as intervenções são realizadas no corpo mesmo e os registros o são na superfície do corpo, incluindo as cavidades naturais do corpo humano. A doutrina, porém, não tem prestado maior atenção à diferença sob o argumento de que o tratamento legislativo é idêntico para ambas as situações.

De acordo com a doutrina e a jurisprudência brasileiras, majoritárias, a extração coercitiva de sangue ou de parte não destacada do corpo humano (cabelo, por exemplo) para exame de DNA não tem sido admitida no ordenamento brasileiro, pois violaria o princípio que veda a auto-incriminação, previsto no artigo 8, n. 2, letra g, da Convenção Americana de Direitos Humanos. A coleta de ar ou de sangue para exame de dosagem alcoólica, do mesmo modo, não poderia ser feita coercitivamente. As cirurgias na pessoa do suspeito, para apreensão de objetos ou para a prova do crime, não poderiam ser feitas coercitivamente. O artigo 158 do Código Civil, dispositivo que produz efeito também no processo penal, as proíbe quando houver risco de morte. Assim, as cirurgias não poderiam ser feitas coercitivamente.

Ainda que não se insiram no conceito de intervenções corporais, a coleta coercitiva de padrões grafotécnicos9 e vocais10 do acusado também têm sido consideradas inadmissíveis pela jurisprudência brasileira. Do mesmo modo, o de reconhecimento de pessoa e a reconstituição do crime só poderiam ser procedidas com a anuência do acusado.

A omissão da advertência quanto ao direito ao silêncio11 também pode serPage 219motivo de nulidade do processo12, porque integrante da garantia de proteção absoluta à incolumidade física e moral da pessoa do acusado.

Nesse estágio do ordenamento jurídico brasileiro, cumpre, agora, como anunciado no item anterior, investigar se essa proteção do corpo humano do acusado visa apenas a tutelar o corpo em si ou outra qualquer entidade não corporal (entidade espiritual ou almática ou psíquica ou moral), ou se a entidade corporal objeto de proteção o é somente quando outro valor constitucional a ela se associa, como o princípio da dignidade, a intimidade, o pudor, etc.

Para tal empreitada, porém, convém examinar, ainda que suscintamente, a origem da dicotomia que se estabeleceu entre a entidade corporal e a não corporal ao longo da evolução da humanidade.

III A Separação das Entidades Corporal e Não-Corporal na Evolução da Humanidade

Fazendo abstração da filosofia do mundo oriental, a filosofia grega é a primeira a ocupar-se com o ser humano, em sua dupla essência: corpo e alma13.

A partir do século V a.C., com os sofistas, a filosofia grega se volta para o homem em si mesmo14. O tema do homem também ganhou grande impulso com a filosofiaPage 220de Sócrates, na virada do século V para IV a. C.15. Mas foi Platão quem construiu uma nítida separação entre o corpo e a alma.

A sua doutrina das idéias seria uma forma de conciliar duas tradições filosóficas em choque: a da permanência do ser e a da mutabilidade das coisas, do que resultaria sua afirmação de que existem essências eternas e imutáveis, ao lado das coisas mutáveis16.

É no diálogo Fedro que Platão explicita a sua idéia da origem das almas, numa parábola atribuída a Sócrates17. Desdobrando-a, chega à origem das almas18. É, portanto, de origem platônica a noção do corpo humano como receptáculo das máculas da vida mundana. Platão diz que, antes da queda da alma, “Não tínhamos mácula nem tampouco contato com esse sepulcro que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha”19.

Assim, a filosofia clássica inaugura uma dicotomia razoavelmente bem estruturada entre a vida corporal e a vida almática, fazendo recair na primeira as mazelas e os defeitos da vida mundana.

Essa tradição platônica prosseguiu na Idade Média e foi apropriada pelo Cristianismo, especialmente pela obra de Santo Agostinho. Para construir sua...

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