A Copa da excecao no tribunal da Teoria Pura do Direito/The World Cup of exception in the tribunal of the Pure Theory of Law.

Autorde Moura Costa Matos, Andityas Soares
  1. Introducao

    Assim como Francisco Laprida no belo Poema Conjetural de Jorge Luis Borges, (4) em 2014 o Brasil se encontrara com seu destino sul-americano. Em ambos os contextos essa ironica expressao tende a definir a vivencia nestas "crueis provincias" enquanto uma tentativa frustrada de conter e afastar a violencia social mediante "instrumentos civilizados" de molde europeu. Laprida morre degolado na llanura argentina, vencido pelos gauchos incivilizados, saudoso dos livros, dos canones e das leis que amara, mas sabendo que ser assassinado apos a derrota e o destino que aguarda qualquer um que pretenda questionar o abuso originario que deu forma a America do Sul. De maneira similar, o fragil Estado Democratico de Direito que a duras penas vem tentando se firmar no Brasil desde a suposta redemocratizacao promovida pela Constituicao de 1988, encontrara em 2014 e 2016 o destino que parece ser comum a muitos dos paises da regiao: ser desmontado internamente pelos instrumentos juridicos do estado de excecao economico. (5) E o mais espetacular disso tudo e que a excecao ira se impor no Brasil--na verdade, ja esta se impondo--no melhor estilo cavalo de Troia, conquistando coracoes e mentes, apelando para o pseudo-orgulho de uma nacao sem identidade, que so encontra a si mesma em um jogo de gosto duvidoso inventado pelos ingleses.

    A qualquer um que saiba interpretar os sinais, nao ha duvida de que a Copa do Mundo de 2014 possui todas as caracteristicas que identificam um evento fundador. E, nesse caso, fundador da excecao, compreendida nao como modelo de governo subsumivel a estruturas legalmente previsiveis, tais como a ditadura e o estado de sitio, mas antes dando lugar a uma relacao entre direito e realidade, norma e fato, dever-ser e ser que se afasta a passos largos dos modelos classicos pensados pela teoria do Estado de Direito. (6) Parece salutar revisitar a historia recente para nos lembrarmos que, assim como ocorreu na Inglaterra, na Africa do Sul e na Grecia, a promocao de megaeventos esportivos mundiais tem dado lugar a estruturas de seguranca e controle--tanto fisicas quanto economicas--que nao se desvanecem com o fim das competicoes, mantendo-se indefinidamente enquanto formas parasitarias e dificultadoras do normal funcionamento do Estado de Direito.

    Com efeito, ninguem pode acreditar seriamente que os imensos investimentos na construcao de estadios, hoteis e estruturas de transporte se limitam aos megaeventos que inicialmente os exigem. Ao contrario, sao formas permanentes que aderem ao Estado-hospedeiro, determinando, por exemplo, seu redesenho urbanistico calcado em padroes de mercado, com a "sanitarizacao" de zonas antes ocupadas pelos mais pobres que, sob o pretexto de "se limpar a casa para a Copa", sao permanentemente desalojados e mandados sabe-se la para onde. Do mesmo modo, as obras publicas e privadas realizadas para receber os megaeventos so se justificam na dimensao retorica do argumento de emergencia. Na verdade, consideraveis recursos publicos estao sendo redirecionados para os megaeventos no Brasil, tendo em vista o regime emergencial da excecao que libera tanto o Estado quanto o empresario particular de diversas regras e amarras que, em situacoes normais, dificultam o desvio de verbas, a privatizacao de bens e espacos publicos e a maximizacao da exploracao urbana e humana pelo capital. (7)

    Se isso e muito mais correspondeu exatamente a verdade quando das Olimpiadas no Reino Unido e na Grecia e da Copa do Mundo na Africa do Sul, nao ha razoes para pensar que o contrario ocorrera no Brasil. Em 2013 o Brasil inclusive ja experimentou uma especie de ensaio geral para a Copa de 2014 sob o modelo autoritario da Copa das Confederacoes, que determinou em algumas das principais cidades brasileiras a criacao de zonas de excecao no entorno dos estadios e vias de acesso em que valia o mandato soberano da Federation Internationale de Football Association (FIFA), ainda que as forcas policiais e militares que as vigiassem fossem exclusivamente brasileiras, dando assim um perfeito exemplo da privatizacao de espacos, recursos e servicos publicos. O fato de que assim se tenha gerado o maior movimento de contestacao que o Brasil viu nos ultimos 20 anos, com a ocupacao de espacos publicos e protestos diarios nas principais capitais do pais, que reuniam de 100.000 a 250.000 manifestantes por capital (por exemplo, em Sao Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), congregando no pais como um todo 3.500.000 pessoas nas ruas (entre os dias 19 e 21 de junho de 2013), demonstra o que efetivamente estava e esta em jogo: o poder de decisao sobre a normalidade e a excecao, a simples e basica liberdade de ir e vir, a compreensao de que os recursos publicos devem ser aplicados em finalidades realmente publicas e nao na construcao de estadios que jamais se abrirao para aqueles que os ergueram. (8) Em suma: o destino de um pais que parece ter acordado brevemente de um longo pesadelo e percebido que a "patria de chuteiras" e um entre os muitos mitologemas de que o poder se utiliza para manter a ditadura economica capitalista travestida com cores liberais e "democraticas".

    E onde Kelsen entra nessa historia toda? Se minha hipotese de trabalho e que o Brasil se encaminha para a vivencia massiva da excecao economica permanente gracas a Copa do Mundo de 2014 e demais megaeventos esportivos, seria mais coerente utilizar enquanto marco teorico autores da excecao, tais como Carl Schmitt e Giorgio Agamben. Ao contrario, Kelsen expressamente admitiu que sua teoria juridica nao serve para descrever o direito e o Estado em momentos de excecao, sendo antes estruturas de conhecimento da normalidade juridico-institucional. Em 1934 ele declarou no prefacio da primeira edicao da Teoria Pura do Direito que sua obra so seria reconhecida em uma epoca de normalidade e de equilibrio social, (9) que desde entao jamais existiu.

    Alem disso, Kelsen nao se vincula a tradicao de pensadores republicanos que, desde Maquiavel ate Rossiter, enxergam na ditadura uma especie de salvaguarda ultima e extrema da republica. No contexto de Weimar, Kelsen lutava pelo pluralismo politico, independentemente da forma que assumisse, fosse republicana ou nao. Prova disso e que em 1918, ao final da Primeira Guerra Mundial, ele apresentou ao entao Imperador austro-hungaro um projeto de Constituicao que organizava o Imperio como uma federacao. O que lhe importava era a vivencia, juridicamente controlada e organizada, da pluralidade de valores, pouco importando que tal se desse sob uma monarquia constitucional ou uma republica. Como ja notei em outro texto, (10) Kelsen tinha as caracteristicas de um vienense da velha cepa, ainda que, na verdade, tenha nascido em Praga. Ele admirava o antigo Imperio Austro-Hungaro por reunir varias etnias e linguas em um Estado multinacional.

    Diferentemente do que fizeram juristas como Carl Schmitt na republica de Weimar, Kelsen nao apostou na excecao, na ditadura ou na estrategia dos poderes especiais para salvar o Imperio Austro-Hungaro. Ao contrario, diante da excecao absoluta da guerra, ele propos uma solucao institucional, consensual e normalizante: a transformacao da Monarquia em uma federacao baseada no direito de autodeterminacao dos povos. Contudo, a ideia foi recusada pelo Imperador Carlos I. Kelsen viu entao naufragar o Imperio, submerso nos escombros da Primeira Guerra Mundial e vitima nao so da derrota militar, mas principalmente do surgimento de ferozes particularismos etnico-nacionais que opuseram austriacos, hungaros, romenos, servios, bulgaros etc. O cosmopolita Kelsen so poderia ter criado uma teoria do direito igualmente cosmopolita, uma autentica teoria geral do direito, em tudo e por tudo contraria a autoexaltacao tipica dos movimentos politicos nacionalistas que buscam a construcao de suas identidades nao por meio do dialogo intercultural, mas com base na possibilidade de confrontacao com o outro, conforme bem exemplifica a celebre tese de Carl Schmitt, para quem um povo se define com base na diade amigo/inimigo.

    Nao havendo tracos de um republicanismo forte no pensamento politico de Kelsen, muito mais preocupado em afirmar o valor da democracia em sentido lato enquanto forma de experiencia politico-juridica relativista (e nao absolutista) e a necessidade de partidos politicos para mante-la, e da mesma maneira dificil encontrar em sua obra uma teoria da ditadura, que se afirma na tradicao politica como um tipo de contraface da republica ameacada. As poucas referencias que Kelsen faz a ditadura sao sempre muito gerais e costumam identifica-la de maneira pouco critica com o despotismo e o autoritarismo, entendidos enquanto macrocategorias da filosofia politica. Por exemplo, na Teoria Geral do Direito e do Estado de 1945, Kelsen descreve as experiencias autocraticas daqueles tempos sob a chave interpretativa da ditadura de partido. Os melhores exemplos, nas suas palavras, seriam o bolchevismo sovietico, o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemao, (11) que se caracterizariam por suprimir a liberdade individual e a independencia dos tribunais, tornando irrelevantes as instituicoes constitucionais e a expressao da vontade popular, "[...] ja que ninguem pode exprimir outra opiniao que nao a aceita pelo partido, sem por em risco patrimonio, liberdade e vida. Dentro das ditaduras de partido, as eleicoes e plebiscitos tem como unico proposito dissimular o fato da ditadura". (12)

    Ha uma outra razao que leva Kelsen a nao se preocupar com a construcao de uma teoria da ditadura. A ele parece que os mecanismos juridicos que permitem a instauracao de ditaduras, se existem dentro de certo sistema empirico de direito positivo, nao merecem maior atencao do que os demais dispositivos que compoem tal sistema, estando todos integrados em uma estrutura geral de normalidade. Tal conclusao decorre de uma critica que Kelsen enderecou a Schmitt em um polemico escrito de 1964, mas que so foi publicado em 2012. Nesse...

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