Cooperativas, empresas e a disciplina jurídica do mercado. Parecer

AutorPaula Andrea Forgioni
Páginas227-241

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I Introdução. O preconceito contra as cooperativas no Brasil

1. E preciso admitir que, entre nós, paira certo preconceito contra as cooperativas, na maioria das vezes porque acabam ofuscados os reais vetores que norteiam sua atividade. Ignora-se não apenas a proficuidade do liame que mantêm com os cooperados, mas, especialmente, as vantagens que podem ser usufruídas por toda a comunidade em que atua.

As cooperativas, tão logo alcançam algum sucesso, são acusadas de prejudicar a livre concorrência e a livre iniciativa, diminuindo o nível da atividade econômica e o emprego. Contra elas se desfecham acusações genéricas de "sonegação de impostos" e de "indevido aproveitamento dos recursos públicos"; suas atividades lesariam "toda a sociedade".

E bem verdade que houve casos de má-gestão do patrimônio de cooperativas, assim como desvio de finalidades por administradores mal intencionados. Mas também é correto afirmar que essas falhas (que ocorrem igualmente em outros países e nas sociedades comerciais) não se prestam a justificar a execração de que esses entes são muitas vezes vítimas. Por conta do desvio de alguns, condena-se toda uma categoria, prejudicando milhões de pessoas.

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II A lógica peculiar das cooperativas e seus vetores de funcionamento

2. As cooperativas - especialmente por não visarem ao lucro e devolverem eventuais proveitos econômicos a seus associados conforme critério que despreza o capital aportado por cada um ("princípio do retorno") - trazem certas vantagens a seus membros impossíveis de serem oferecidas a clientes das empresas comerciais.

Ao contrário dos empreendimentos mercantis, esses entes coletivos não guardam em sua essência a chamada "lógica de mercado", embora nele interajam com outros agentes econômicos. Isso porque - repise-se - não almejam lucro, mas proporcionar determinados benefícios àqueles a elas vinculados (/.., obter "proveitos comuns", na terminologia empregada pela Lei brasileira). Por conta disso, não é raro ouvir que, neste tipo de organização, "o homem não é o lobo do homem".

Essa diferença de escopo em relação às sociedades comerciais impele a cooperativa à lógica embasada em princípios peculiares, que se reflete na forma de organização e funcionamento diversos daqueles tipicamente capitalistas.

Mas é bom que se advirta: o desprezo pelo lucro não significa o transcurar da econo-micidade, ou seja, também nas cooperativas busca-se organizar/conduzir a atividade de forma a produzir os melhores resultados possíveis tendo em vista os meios disponíveis, sempre no encalço dos objetivos comuns. O desprendimento do lucro não significa amadorismo e muito menos forma desonesta de conduta.

3. O mote que inspirou a criação das cooperativas na Inglaterra de meados do século XIX não se esvaiu até os dias de hoje. A "perenidade de uma comunhão de interesses"1 construiu-se, de início, ao redor do auxílio mútuo para a compra coletiva de gêneros de primeira necessidade. Vinte e oito operários, em meio a ambiente econômico, cultural e social que lhes era francamente desfavorável, uniram-se para adquirir mercadorias, constituindo a "Sociedade dos Pioneiros Probos de Rochdale" ("Rochdale Society of Equitable Pioneers").2 Em uma década, seu armazém já ultrapassava 1.400 cooperados.

Um dos principais méritos dos "Pioneiros de Rochdale" foi o assentamento dos princípios básicos que seguem enformando a atividade cooperativa:3

Não lucratividade: na cooperativa, as pessoas reúnem-se em torno da busca da satisfação de necessidades comuns, e não do lucro.

Retornabilidade ou "Distribuição do excedente pro rata das transações dos membros": os eventuais excedentes (proveitos) decorrentes da atividade do ente cooperativo são distribuídos conforme o aproveitamento de cada associado. Isso permite a restituição daquilo que eventualmente pagaram "a mais" nas suas operações com a cooperativa. Assim, a sociedade consegue vender ao preço corrente e se acautelar contra os riscos de possíveis variações do preço de custo.4

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Adesão livre: a cooperativa deve manter sua "porta aberta", i.e., não há de impedir ou dificultar a agregação de outras pessoas, desde que atendam a requisitos prévia e estatutariamente ajustados; essa união deve ser voluntária e não forçada.

A cada associado um voto ("one man, one vote"): todo associado tem direito a um voto, independentemente de sua participação no capital e do volume de operações mantido com a cooperativa. Afirma-se, por conta desse princípio, que a organização cooperativa é democrática.

Não discriminação política ou religiosa: desde a sua origem, o espírito cooperativo exige que a adesão de seus membros seja feita sem qualquer tipo de preconceito.

Incentivo à educação: os pioneiros de Rochdale imprimiram ao cooperativismo mais esse viés social, que reflete preocupação não apenas com o desenvolvimento moral, cultural, intelectual e econômico dos associados, mas de toda a comunidade com a qual o ente relaciona-se. A identificação é com o desenvolvimento do homem, e não apenas daqueles que aportam recursos ao empreendimento comum.

III Cooperativas e capitalismo

4. Ao longo do século XX, as cooperativas espalharam-se pelo mundo. A doutrina identifica o desenvolvimento do cooperativismo como reação às disfunções típicas do sistema capitalista. Com efeito, trata-se de um instrumento de correção dos efeitos autodestrutíveis espontaneamente gerados pelo funcionamento do próprio mercado,56 especialmente a exploração da classe operária e a concentração do poder econômico nas mãos de poucos.7

Vê-se, portanto, que as cooperativas não representam um "corpo estranho no sistema", e tampouco são intrínsecamente antagônicas ao capitalismo; ao contrário, destinam-se a protegê-lo. Agem como "células de correção" inseridas no tecido econômico, visando à satisfação de outros interesses que não necessária e imediatamente identificados com o grande capital.

Tome-se, como exemplo, uma cooperativa de consumo (= compras comuns). Na medida em que oferece melhores condições para a aquisição dos produtos, força as empresas que atuam no mesmo mercado a baixar seus preços, diminuindo seus lucros. Assim, as cooperativas acabam contrapondo-se ao poder econômico porque evitam abusos típicos de certos setores da economia. Nessa esteira, afirma Bulgarelli que as sociedades cooperativas afastam a especulação, "repudiando a característica fundamental das sociedades capitalistas".8

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A explicação desse fato é bastante simples: como já tive ocasião de pontuar, a concorrência, ao mesmo tempo em que é benéfica ao mercado e ao desenvolvimento, prejudica o agente econômico, pois empuxa a redução dos preços e o aumento da qualidade. A competição - advertiu Jhering - é o "regulador espontâneo do egoísmo".9 Deixada no exercício de sua atividade sem grandes pressões competitivas, a empresa mercantil tende a obter o maior lucro possível e, assim, a explorar a coletividade.10 Daí já ter o Superior Tribunal de Justiça afirmado várias vezes que "[a] presença de cooperativas implica que outros segmentos, para atender à concorrência, viabilizem o acesso da população aos" produtos "necessários, a preços mais acessíveis".11

5. Na primeira metade do século XX, as cooperativas venceram a luta por seu reconhecimento e tipificação jurídica;12 os governos de vários Estados, diante do ideário cooperativista e de seu potencial de coibir "naturalmente" (= sem necessidade de intervenção estatal) o abuso do poder econômico, incentivam a formação desses organismos e sua atuação no mercado.13

Trata-se, a todo sentir, da implementação de uma política pública™ encetada pelos Estados Modernos, que reconhece e estimula a função social das cooperativas.15"16

IV A Lei n. 5.764, de 1971

("Lei das Cooperativas") e a disciplina cooperativa na Constituição do Brasil

6. No Brasil, o incentivo estatal às cooperativas incrementa-se com a edição da Lei n. 5.764, de 1971, que incorpora o ideário rochdaliano.17 Sua exposição de motivos é clara: "não seria possível desconhecer a importância fundamental do cooperativismo brasileiro, que vem desempenhando transcendente tarefa na organização de uma estrutura socioeconómica, que corresponde plenamente às múltiplas exigências do desenvolvimento nacional".

7. Quanto a não lucratividade e ao espírito associativo, dispõe seu art. 3- que "[c] elebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercí-

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cio de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro" (cf. art. 3-).18

A breve leitura do texto do art. 4º do mesmo diploma desvela a presença dos princípios cooperativistas:

"Art. 4-. As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

"I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;

"II - variabilidade do capital social representado por quotas-partes;

"III - limitação do número de quotas -partes do capital para cada associado, facultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;

"IV- inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à...

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