A Convencao da Crianca e os Limites na Responsabilizacao de Criancas e Adolescentes no Brasil: Rupturas e Permanencias: The Child Convention and the Limits on the Liability of Children and Adolescents in Brazil: Ruptures and Permanences.

AutorSouza, Luanna Tomaz De
CargoDireito e Praxis

Introducao

No ano de 2019, completa-se 30 anos da Convencao sobre os Direitos da Crianca, adotada em Assembleia Geral das Nacoes Unidas, em 20 de novembro de 1989, e promulgada pelo Decreto no 99.710, de 21 de novembro de 1990, no Brasil. Este importante documento, por meio de seus 54 artigos, contribuiu significativamente para o reconhecimento dos direitos de criancas e adolescentes em ambito mundial.

A Convencao e um dos mais amplos tratados internacionais de direitos humanos, ratificada por 193 paises, fazendo com que varios deles incorporassem na sua legislacao nacional estatutos sobre o tema e efetuassem reformas juridicas baseadas nos dispositivos da Convencao. Trata-se do instrumento de direitos humanos mais ratificado em escala mundial, sendo que a grande maioria das ratificacoes ocorreu nos primeiros 10 anos apos sua aprovacao (ROSEMBERG; MARIANO, 2010).

Um dos aspectos que devem ser ressaltados e sua preocupacao em sustar algumas das violacoes perpetradas pelos Estados no ambito punitivo criando diferencas quanto aos mecanismos de sistema de justica criminal, mas impondo direitos e garantias. Nos termos da Convencao, por exemplo, a intervencao dirigida aos adolescentes infratores deve promover e estimular seus sentidos de dignidade e de valor, e fortalecer o respeito destes pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros (art. 40).

A presente pesquisa buscara verificar a relevancia dos limites estabelecidos pela Convencao ao poder estatal, na responsabilizacao de criancas e adolescentes em conflito com a lei e seu impacto no Brasil. Percebe-se, no pais, que, a revelia do que determinam a Convencao e o Estatuto da Crianca e do Adolescente--ECA (Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990), a socioeducacao tornou-se uma ferramenta a servico da punitividade estatal, que, alem de atribuir-lhes a qualidade de sujeitos perigosos, com a conivencia das normas juridicas brasileiras, retirou-lhes direitos (ABOIM, 2018).

De acordo com o Levantamento anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo--SINASE (BRASIL, 2016), em 2016, tinhamos um total de 26.450 atendidos, sendo 18.567 em medida de internacao (70%), 2.178 em regime de semiliberdade (8%) e 5.184 em internacao provisoria (20%). Ha, ainda, outros 334 adolescentes/jovens em atendimento inicial e 187 em internacao sancao. O Conselho Nacional de Justica--CNJ, por meio do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei, aponta o numero de 189 mil adolescentes cumprindo medidas socioeducativas no pais, a maioria esta em medidas em meio aberto, mas com crescimento exponencial das medidas em meio fechado ano a ano (1).

Para a analise aqui realizada, a partir do metodo dialetico, serao consideradas as dinamicas de apuracao de atos infracionais existentes no sistema de justica brasileiro em periodo anterior e posterior a vigencia da Convencao, destacando suas rupturas e permanencias. Com suporte em bases bibliograficas e documentais, busca-se compreender as tensoes na aplicacao das medidas socioeducativas no pais.

A Convencao dos Direitos da Crianca e a pratica infracional

A nocao de crianca enquanto sujeito de direitos surge muito contemporaneamente no cenario juridico internacional. Em 26 de setembro de 1924, temos a primeira Declaracao dos Direitos da Crianca, que teve como grande avanco reconhecer que a responsabilidade pela crianca e coletiva e internacional. Nao teve, entretanto, grande impacto sobre os Estados, pois se afirmava como uma declaracao de obrigacoes dos homens e mulheres sem forca coercitiva.

Em 20 de novembro de 1959, surge uma segunda declaracao perfilhando a necessidade de protecao e cuidados especificos a infancia. Este documento, mesmo sem forca coercitiva, criou forte impacto internacional, sendo convocadas, a partir dele, diversas reunioes internacionais. Segundo a Declaracao, seu objetivo e:

(...) que a crianca tenha uma infancia feliz e possa gozar, em seu proprio beneficio e no da sociedade, os direitos e as liberdades aqui enunciados e apela a que os pais, os homens e as mulheres em sua qualidade de individuos, e as organizacoes voluntarias, as autoridades locais e os Governos nacionais reconhecam estes direitos e se empenhem pela sua observancia mediante medidas legislativas e de outra natureza, progressivamente instituidas (UNICEF, 1959). A Declaracao teria consolidado o entendimento de que as criancas e os adolescentes sao sujeitos de direito, nao meramente objetos destes (ANDRADE, 2010: 80). A partir dela, em ambito internacional, passou a se entender que nao somente a crianca "pobre e delinquente" seria atendida na sua plenitude, mas, conforme o seu principio 1:

Todas as criancas, absolutamente sem qualquer excecao, (...), sem distincao ou discriminacao por motivo de raca, cor, sexo, lingua, religiao, opiniao politica ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condicao (...) (UNICEF, 1959). Em 1989, a Convencao sobre os Direitos da Crianca (2), reune os avancos desses documentos e reafirma a necessidade de protecao da infancia, erigindo, ao mesmo tempo, a crianca como um sujeito de diversos direitos. A partir da Convencao, as criancas passam a ser vistas como titulares de direitos universalmente reconhecidos que devem ser garantidos tanto pelo Estado, como pela familia ou, ainda, pela sociedade como um todo (MACIEL, 2010).

Importante destacar que ela e o primeiro documento internacional a utilizar um criterio para definicao de crianca. Em seu art. 1, configura a crianca como todo ser humano com idade inferior a 18 anos, exceto quando, pela lei do pais, a maioridade seja estabelecida antes. Isso e fundamental diante da indeterminacao ate entao vigente. Ressalta-se que, no Brasil, o ECA define crianca como todo ser humano ate os 12 incompletos e adolescente de 12 aos 18 incompletos.

Em realidade, a compreensao da infancia como uma fase diferenciada no desenvolvimento do ser humano e recente e nao pode ser entendida dentro de uma mera abstracao, mas como reflexo de um conjunto de compreensoes sobre familia, maternidade, direitos, adolescencia, aspectos socioculturais e tambem juridicos. Desde o seculo XII, a sociedade desenvolve modelos para infancia, alijando, contudo, determinadas criancas de vive-los, principalmente as mais pobres (ARIES, 1978).

Outro aspecto a ser destacado e que a Convencao erige principios como o do superior interesse da crianca e o da prioridade, que inclusive ja estavam consagrados na 2aDeclaracao de 1959 (3), mas ganham maior relevo no bojo dos mais de 50 artigos que contemplam diversos direitos. Isso causou um profundo impacto. A Convencao tambem criou mecanismos coercitivos, como o Comite sobre os Direitos da Crianca que monitora o cumprimento da Convencao.

No ambito punitivo, a Convencao deve ser lida em conjunto com diversos documentos que, em alguns, sao aplicados igualmente aos adultos: as Regras Minimas das Nacoes Unidas para Administracao da Justica Juvenil--Regras de Beijing (1985) (4), as Diretrizes das Nacoes Unidas para Prevencao da Delinquencia Juvenil--Diretrizes de Riad (1990) (5), as Regras Minimas das Nacoes Unidas para Protecao dos Jovens Privados de Liberdade--as Regras de Havana (1990), (6) e as Regras Minimas das Nacoes Unidas para Medidas Nao Privativas de Liberdade--Regras de Toquio (1990) (7), tambem de 1990. Estes documentos sao importantes por tracar limites ao que, em regra, ficava sob tutela somente dos Estados.

A Convencao, no bojo dessas preocupacoes de impor regras a atuacao do Estado na responsabilizacao das criancas e dos adolescentes, estabelece diretrizes importantes como a vedacao a tortura, penas crueis e degradantes, bem como prisoes arbitrarias. Alem disso, estabelece o direito de defesa e de contato com a familia e a separacao dos adultos no cumprimento das punicoes:

rtigo 37 Os Estados Partes zelarao para que: a) nenhuma crianca seja submetida a tortura nem a outros tratamentos ou penas crueis, desumanos ou degradantes. Nao sera imposta a pena de morte nem a prisao perpetua sem possibilidade de livramento por delitos cometidos por menores de dezoito anos de idade; b) nenhuma crianca seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitraria. A detencao, a reclusao ou a prisao de uma crianca sera efetuada em conformidade com a lei e apenas como ultimo recurso, e durante o mais breve periodo de tempo que for apropriado; c) toda crianca privada da liberdade seja tratada com a humanidade e o respeito que merece a dignidade inerente a pessoa humana, e levando-se em consideracao as necessidades de uma pessoa de sua idade. Em especial, toda crianca privada de sua liberdade ficara separada dos adultos, a nao ser que tal fato seja considerado contrario aos melhores interesses da crianca, e tera direito a manter contato com sua familia por meio de correspondencia ou de visitas, salvo em circunstancias excepcionais; d) toda crianca privada de sua liberdade tenha direito a rapido acesso a assistencia juridica e a qualquer outra assistencia adequada, bem como direito a impugnar a legalidade da privacao de sua liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial e a uma rapida decisao a respeito de tal acao (BRASIL, 1990a). De outro lado, a Convencao adverte sobre a importancia da aplicacao de todo um manancial principiologico tambem as criancas, tais como o principio da legalidade, da nao retroatividade, da presuncao de inocencia, do direito a informacao, da ampla defesa e do contraditorio, da privacidade e do devido processo legal.

Artigo 40 1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda crianca a quem se alegue ter infringido as leis penais ou a quem se acuse ou declare culpada de ter infringido as leis penais de ser tratada de modo a promover e estimular seu sentido de dignidade e de valor e a fortalecer o respeito da crianca pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de terceiros, levando em consideracao a idade da crianca e a...

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