A Controvertida Recepção do Artigo 384 da Consolidação das Leis do Trabalho pela Constituição Federal de 1988: Recurso Extraordinário com Repercussão Geral Reconhecida 658312/SC

AutorMarta Regina Savi
CargoAdvogada. Graduada em Direito (FAE) e História (UFPR)
Páginas29-35

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Excertos

"A inserção da mulher no mercado de trabalho, portanto, pode se valer de, pelo menos, um imperativo: jamais ocorreu de forma natural e sem confiitos" "O desenvolvimento legislativo sobre o tema da proteção ao trabalho da mulher pode ser observado quando analisadas as leis (e aqui incluídos também decretos-leis e medidas provisórias) que alteraram, revogaram e incluíram dispositivos específicos no capítulo desde a promulgação da CLT"

1. Introdução: uma breve e necessária contextualização histórica

O presente artigo pretende debater a controversa questão da recepção do artigo 384 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pela Constituição Federal de 1988, através da análise do voto favorável do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli em julgamento do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral Reconhecida 658312/SC em novembro de 2014. Vale esclarecer que, embora o voto permaneça disponível, a sessão de julgamento foi anulada e o processo ainda não tem previsão de novo julgamento de mérito, não tendo trânsito em julgado registrado.

A redação inalterada do artigo 384 do diploma celetário, que está inserido no capítulo destinado à proteção do trabalho da mulher na CLT e, portanto, seria aplicável apenas às trabalhadoras, determina que "em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de 15 (quinze) minutos no mínimo, antes do início do período extraordinário do trabalho".

Contudo, para construir o panorama necessário à análise aqui proposta é preciso pensar em, pelo menos, dois cenários principais: o momento de edição da norma, na década de 1940, e o atual, sob o enfoque específico da participação da mulher no mercado de trabalho e a necessidade ou não de proteção - e sua medida - ao trabalho feminino.

A Consolidação das Leis do Trabalho foi promulgada em 1943, durante o Estado Novo, fase ditatorial do primeiro governo de Getúlio Vargas1. Os estudos sobre o impacto da organização e sistematização da legislação trabalhista são grandiosos em número, extensão e em importância, razão pela qual este breve artigo, apesar de não se furtar ao compromisso deste debate, não será permeado integralmente por tal problemática.

Feito este esclarecimento, vale lembrar que, em um contexto global, a primeira metade do século XX - marcada por impactantes eventos, como as duas grandes guerras mundiais, a revolução russa, a quebra da bolsa de Nova York e o fiorescimento de doutri-nas de nacionalismo extremado

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como nazismo e fascismo - apresentou abalos tão profundos na lógica capitalista que fez com que se acreditasse que o desmoronamento do sistema político e econômico como um todo seria inevitável. Assim, não surpreende dizer que o mundo encontrava-se em um momento único, em que os cenários político, econômico e social mostravam-se em efervescência2.

Dentro dessa conjuntura mun-dial verdadeiramente explosiva, é possível apresentar brevíssimos panoramas social, econômico e político do Brasil após a chamada Revolução de 19303, manobra política utilizada por Getúlio Vargas e aliados para assumir o comando do país, que podem ser estabelecidos através da contraposição de historiadores especialistas no período.

Os anos de 1930 e 1940 foram recheados de contradições no campo trabalhista. Ao mesmo tempo que propunha uma administração progressista e que consolidava uma forte imagem de "pai dos trabalhadores"4, Getúlio Vargas também utilizou sem muito disfarce5 os assim chamados avanços trabalhistas para frear os ímpetos grevistas e organizacionais dos trabalhadores. Nesse sentido, a verticalização da atuação sindical parece ser um bom exemplo da utilização da legislação trabalhista para a dupla função de "tornar livre" a classe trabalhadora e agradar, também, àquela detentora do capital, tal qual apontou Karl Marx em seu clássico estudo, O Capital:

Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados do seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda Europa oci-dental, no final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabunda-gem. (...) Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho. Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No envolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas.6

Aqui vale destacar, ainda, que tardia abolição da escravatura no país teve papel determinante na construção de uma classe trabalhadora brasileira que se reconhecesse como detentora de direitos e, por consequência, em um patronato que passasse a respeitar, ainda que minimamente, esses direitos. Esse confiito, ainda hoje, não foi integralmente superado.

Estabelecido o breve - mas de sorte alguma encerrado - contexto, é preciso pensar de que forma é possível inserir o trabalho da mulher neste período. Para tanto, pode-se narrar, como fez Ângela de Castro Gomes, um caso ver-dadeiramente paradigmático:

Sultana Levy, uma paraense nascida em 1910, foi das primeiras funcionárias da Justiça do Trabalho no Brasil. (...) Segundo dona Sultana, que se encarregava de datilografar as reclamações dirigidas à Junta de Conciliação e Julgamento de Belém, nem bem a dita Junta começou a funcionar, já eram muitas as demandas de trabalhadores (...) Entre as mais numerosas estavam as queixas de empregados demitidos sem justa causa e as demandas de operárias que, grávidas, pediam a proteção que a lei lhes garantia. Certamente por ser mulher, dona Sultana observou que foram muitas grávidas que buscaram a justiça, mas um caso lhe chamou particularmente a atenção: o de uma operária cujo patrão reagiu à sentença do presidente da Junta, argumentando que tinha a certeza de que não era o pai da criança e, por isso, não tinha obrigação de manter a empregada. O fato evidencia duas coisas. Primeiro, que muitos patrões eram efetivamente pais dos filhos de operárias, pois, como se sabia (...), delas abusavam devido a sua posição de poder. Segundo, que a sincera indignação daquele homem demonstrava o quão distante estava da mentalidade dos empregadores brasileiros a ideia de que trabalhadores deviam ter direitos e que cumpria aos patrões respeitá-los.7

A inserção da mulher no mercado de trabalho, portanto, pode se valer de, pelo menos, um im-perativo: jamais ocorreu de forma natural e sem confiitos.

Portanto, é esta a trama8 que dá o tom da legislação trabalhista voltada à "proteção do trabalho da mulher", expressão que dá título ao capítulo III do título III ("Das Normas Especiais de Tutela do Trabalho") da Consolidação das Leis do Trabalho.

Ora, é notório que tal capítulo objetivou, já no original, a igual-dade entre o trabalho masculino e feminino, ressalvando as proteções especiais garantidas por ele. Tal intuito resta evidenciado na redação inalterada do artigo 372 da CLT, que define que "os preceitos que regulam o trabalho masculino são aplicáveis ao trabalho feminino, naquilo em que não colidirem com a proteção especial instituída por este Capítulo". Contudo, este mesmo dispositivo legal demonstra, na literalidade ainda vigente de seu parágrafo único, que esta legislação foi, antes de tudo, produto de seu tempo histórico:

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Art. 372 (...)

Parágrafo único - Não é regido pelos dispositivos a que se refere este artigo o trabalho nas oficinas em que sirvam exclusivamente pessoas da família da mulher e esteja esta sob a direção do esposo, do pai, da mãe, do tutor ou do filho.

O desenvolvimento legislativo sobre o tema da proteção ao trabalho da mulher pode ser observado quando analisadas as leis (e aqui incluídos também decretos-leis e medidas provisórias) que altera-ram, revogaram e incluíram dis-positivos específicos no capítulo desde a promulgação da CLT. À guisa de exemplificação, pode-se destacar o artigo 379, que, no original, proibia o trabalho noturno e foi sendo paulatinamente acrescido de exceções à proibição pelos decretos-lei 229/1967, 546/1969 e 744/1969 e pelas leis 5.673/1971 e 7.189/1984, até ser integralmente revogado pela Lei 7.855/1989, que manteve a redação apenas do artigo 381 da seção destinada a regular a matéria. Este artigo, tal qual o disposto no artigo 73 da CLT, garante salário superior e hora reduzida ao trabalho noturno.

Contudo, e não livre de acaloradas discussões, o artigo 384 da CLT bate à casa dos 73 anos com sua redação, que garante às mulheres um descanso de pelo menos 15 minutos entre a jornada normal e a extraordinária, inalterada. Sua recepção pela Constituição Federal de 1988 está em debate.

Assim, o que se pretende a partir deste artigo é debater a questão do intervalo previsto pelo artigo 384 a partir da ótica do princípio da isonomia entre os sexos à luz dos princípios constitucionais, analisando, para tanto, os argumentos utilizados pelo ministro Dias Toffoli para fundamentar o voto que considerou o artigo celetista recepcionado pela Constituição Federal em vigência, além de buscar, na doutrina e na jurisprudência dos tribunais, argumentos que refutem a posição tomada pelo STF.

2. Uma questão de argumentação: os fundamentos do voto do ministro Dias Toffoli e dos...

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