Controles públicos da atividade profissional do arquiteto

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas149-184

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Quibus autem artibus aut prudentia maior inest aut non mediocris utilitas quaeritur ut medicina, ut architectura, ut doctrina rerum honestarum, eae sunt iis, quorum ordini conveniunt, honestae 1 .

Cícero, De Officiis, I, XLII

I Exposição do problema

Em se tratando da ética prática, segundo Cícero, a primeira de todas as virtudes é a prudência (ou sabedoria), que é o conhecimento daquilo que se deve procurar ou evitar. Na Rethorica ad Herennium – obra que durante muito tempo lhe foi atribuída – a prudência integra as circunstâncias do espírito (res animi) “que dependem da nossa decisão e do nosso conhecimento”. Daí o paradigma do “homem prudente”, muito utilizado no mundo do direito como critério decisório: o que o “homem prudente” faria em dado caso concreto, quando tivesse de tomar decisões? A Arquitetura, como toda arte, será uma operação

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intelectual que busca um resultado prático efetivo. A prudência, neste contexto, torna-se uma virtude (virtus) reguladora, recta ratio agibilum, ou seja, o conhecimento justo das ações a serem desenvolvidas para realização do resultado pretendido pelo arquiteto.

Decorre disto o surgimento recente do termo, de origem grega, “deontologia” (“deon” = dever e “logos” = ciência) para designar o conjunto de deveres específicos de cada profissão que privilegiam os valores coletivos e que, no caso da Arquitetura, a expressão “direito à cidade” revela e expõe. Mais recente ainda, o chamado “direito à Arquitetura e Urbanismo”, que, segundo o item 2.1.2 do Código de Ética e Deontologia (CED) do Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAU/BR, todo profissional deve defender, insere-se no âmbito do direito à cidade ou é uma decorrência dela.

Ora, quando se pensa em regra, em norma, em lei, pensa-se também em controle, em fiscalização, em verificação do seu cumprimento, independentemente dos interesses privados em jogo. Além do crivo judicial, a atividade profissional do arquiteto está submetida a múltiplos controles administrativos prévios, preventivos, porque implica diversos deveres prudenciais e responsabilidades correlatas. Ambos os temas se conectam. Os controles públicos existem porque, antes, há deveres de variadas ordens a cumprir, do que pode gerar responsabilidades – que são consequências da violação de deveres. Isto se explica facilmente porque, como escreve, em lição clássica, o professor argentino Alcides Greca, “o arquiteto é a peça-chave em toda construção de edifícios destinados a serem habitados por seres humanos. Suas atividades, assim como suas responsabilidades, são transcendentes”2. Sendo transcendentes, ou seja, “transgredindo os limites de determinado espaço intencional” (Henrique C. de Lima Vaz), elas ultrapassam o interesse próprio ou do contratante para se vincular ao interesse coletivo maior. Não é por outro motivo, aliás, que o arquiteto é um profissional liberal no sentido próprio atual, aparentemente contraditório, de

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não poder determinar sua atuação livremente, como bem achar. Esta liberdade de determinação quanto aos meios de ação, absolutamente, não lhe ocorre diante da necessária qualidade do projeto em face da lei urbanística e, depois, mediante o processo construtivo, da edificação3.

Daí a necessidade de que sejam verificados, em cada caso, seus deveres profissionais – e eventuais responsabilidades – seja em face da legislação urbanística e edilícia (entremisturadas), seja em face das normas jurídicas e técnicas concernentes à profissão liberal, regrada pela corporação. A primeira, portanto, relaciona-se com o Direito Urbanístico e a segunda com o Direito da Arquitetura, conjuntos distintos de normas jurídicas4. Dentre os instrumentos de controle estão a licença edilícia e, mais recentemente, o registro de responsabilidade técnica (RRT) que, para os arquitetos, substituiu a antiga ART – Anotação de Responsabilidade Técnica, criada em 1977 pela Lei nº 6.469. Na verdade, conforme o tipo de obra e o local em que ela se situa, os controles podem se ampliar – e envolver o órgão do patrimônio natural ou cultural, da segurança contra incêndio, etc., – ou diminuir. Mas, fundamentalmente, as normas urbanísticas, referentes à conformação do espaço urbano, e as normas profissionais, hoje consubstanciadas pela Lei federal nº 12.378/10 (lei do CAU), ambas normas de ordem pública, são de observância primária e necessária.

Controles autônomos feitos por distintos entes públicos (um estatal e outro paraestatal), com finalidades diversas, pode haver um descompasso entre a licença edilícia e o registro de responsabilidade técnica – e é disto que aqui trataremos. O primeiro é o controle pré-

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vio da obra edilícia (construção, reforma, demolição), feito perante a Prefeitura Municipal a partir do projeto apresentado pelo arquiteto em documento que assina juntamente com o proprietário do lote. Mas existirá, por certo, um campo próprio da licença para ocupar o solo urbano, que tem base no art. 30/VIII da CF, e um campo que lhe escapa mas que, nada obstante, constitui trabalho do arquiteto. Por exemplo: uma piscina numa habitação unifamiliar. O segundo (RRT) é o registro do contrato de prestação de serviço de arquitetos e urbanistas, feito pela corporação profissional (CAU/UF) que, no concerto da Administração Pública, é inserida na situação especial de “ente com situação peculiar” (Odete Medauar). Tal registro visa vincular o profissional à sua obra, do que decorrem direitos e obrigações para o arquiteto e também para terceiros. Criado para arquitetos e engenheiros em 1977, é um modo pontual e incisivo do controle da corporação profissional sobre a atividade de seus filiados, formando o acervo técnico da produção de cada um deles (v. arts. 45-50 da lei do CAU)5. Pode-se fazer um quadro a respeito, para maior clareza:

São círculos concêntricos sendo maior o raio do Direito da Arquitetura, por ser mais abrangente em temas e problemas, sobretudo aqueles referentes à técnica construtiva. É evidente que a toda licença edilícia deve corresponder ao RRT ou, mais do que isso, o RRT é um pressuposto para a obtenção da licença edilícia, um requisito indis-

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pensável para que seja alcançada. Há, pois, uma continuidade entre eles quando houver verdadeiramente construção no sentido próprio e operacional de processo construtivo da futura edificação6. Porém o inverso não é verdadeiro e é exatamente isto que queremos explorar neste texto.

Em outras palavras, nem toda obra de Arquitetura exige licença edilícia a depender da aprovação do “risco do prospeto” (cf. vereação do Senado da Câmara de Salvador, de 1785) porque nem toda obra de Arquitetura consiste em construção de obra nova sobre o solo (a hipótese mais característica), estável e permanente, com impacto relevante no meio urbano a justificar a atuação preventiva do ente local. Vamos, pois, tratar desse específico descompasso entre as instâncias, elencando, especialmente, algumas circunstâncias em que os controles não coin-cidem. Ademais, no que tange ao direito à cidade, o controle sobre a regularidade do lote – que a Prefeitura examina aquando da concessão da licença, seja de construção, seja de demolição –, não tem nenhum cabimento em referência ao CAU e ao projeto edilício.

Cabe apenas ressaltar, de passagem, que a “licença” – sistematizada no século XIX, na Europa, e apenas no começo do século XX, no Brasil – não se confunde com o “alvará”, o que consiste em confusão usual. Como ensina Odete Medauar, “o alvará é o documento escrito que expressa a manifestação concordante da autoridade administrativa”7. Alvará é forma. Mas seu conteúdo pode ser tanto de licença quanto de autorização, dentre outras possibilidades de concordância do Poder Público. Portanto, é incorreto dizer que a obra edilícia depende de alvará: ela depende, na verdade, de licença (conteúdo do “alvará”) de aprovação e de execução que no Brasil se denomina licença edilícia e na Espanha, talvez mais acertadamente, licença urbanística. Na França é o “permis de construire”, aplicado em 1852 apenas nas

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ruas de Paris -mas seu enfoque só será nitidamente urbanístico a partir de 1919 na chamada “lei Cornudet”, que expandiu a exigência para outras cidades. Também no Brasil a licença foi organizada pelas Municipalidades no começo do século XX apenas para certas áreas centrais das cidades, notadamente os centros urbanos, e depois é que se universalizou8. Antes, a aprovação local não tinha o devido cumprimento, sendo necessário registrar que, do século XVIII, há diversas vereações do Senado da Câmara de Salvador dizendo e repetindo isto: “toda pessoa que fabricar9 obra tenha licença do Senado, inda que esteja coberta de telha, além de mais pena que tem, a demolirá a sua custa” (1726).

Já as corporações profissionais foram instituídas no começo do século XX, posto que antes simplesmente inexistiam como serviço público. No Brasil, foi o Decreto nº 23.569, de 11 de dezembro de 1933, editado por Getúlio Vargas, que pela primeira vez regulamentou o exercício da profissão de engenheiro, arquiteto e agrimensor e criou o sistema CREAs/CONFEA (“art. 18. A fiscalização do exercício da engenharia, da arquitetura e da agrimensura será exercida pelo Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura e pelos Conselhos Regionais”). Na Itália, isto ocorreu dez anos antes, em 1923, com a Lei nº 1.395, de 24 de junho, que tutelava o exercício profissional de engenheiros e arquitetos. É curioso observar que os arquitetos italianos também formaram uma corporação própria quase dez anos antes do CAU: com efeito a “Ordine degli architetti, pianificatori, paesaggisti e conservatori” (APPC) foi criada em 2001 (Decreto 328/01) e o CAU em 2010.

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Foi só a partir daquele momento, no começo...

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