Controle de políticas públicas na justiça do trabalho

AutorManoel Jorge e Silva Neto
CargoProfessor de Direito Constitucional nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Bahia
Páginas267-287

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1. Proposta do artigo

Nesses desassossegados anos iniciais do Século XXI, cheios de conflitos internacionais, avanços tecnológicos e incertezas quanto

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ao futuro, parece claro que nunca na história da humanidade tanto se perseguiu o valor segurança como atualmente.

O desejo de segurança surge com um atavismo e intensidade que não poderiam ser imaginadas há pouco tempo atrás.

E o ser humano, de modo indeclinável, termina por transportar para o Estado todas as suas expectativas quanto à configuração de um mundo mais seguro.

Entretanto, o que os dados da experiência têm demonstrado é que, infelizmente, as pretensões humanas têm sistematicamente esbarrado na também atávica incapacidade estatal de dar resposta efetiva às demandas dos indivíduos, de modo marcante aquelas que possuam conteúdo de natureza social.

Esse é o ponto de onde partiremos para examinar o controle judicial de políticas na Justiça do Trabalho, especialmente quando os denominados atos de governo se apresentam em rota de colisão quanto aos princípios constitucionais conformadores.

Não resta mais dúvida no sistema da ciência do direito quanto à sindicabilidade dos atos de governo, ou controle judicial de políticas públicas, em qualquer domínio cuja política implementada esteja com o sinal contrário às injunções firmadas em nível constitucional.

Logo, ainda que não mais se discuta no campo doutrinário a possibilidade de controle judicial dos atos de governo, parece correto indicar as principais objeções aduzidas em torno à viabilidade de tal controle, máxime porque podem aparecer perplexidades no tocante à condução do tema aos órgãos jurisdicionais trabalhistas.

Será, por isso, dedicado o item 2 para o estudo do tema sindicabilidade dos atos de governo.

Já no item 3 buscar-se-á o exame dos princípios constitucionais, dando-se ênfase aos princípios fundamentais referidos nos arts. 1º/4º da Constituição Federal, tudo com o objetivo de demonstrar a compostura juridicamente vinculante de tais disposições, trazendose, além disso, exemplos práticos de conformação de políticas públicas com amparo nos postulados fundamentais.

O item 4 guarda relação com importante questionamento de ordem prática e que se atém à discussão acerca da competência da Justiça do Trabalho para efetivar o controle judicial de política pública quando em oposição aos princípios constitucionais, de forma específica no que tange a todos aqueles que ordenam a valorização do trabalho humano.

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No item 5, haverá a análise do controle judicial de política pública diante da oposição da tese da reserva do possível, tendo em vista as constantes recusas do Poder Público na implementação de normas destinadas à fruição de direitos fundamentais sociais com amparo na ideia de ausência de recursos suficientes para atender integralmente às demandas sociais.

No item 6, será examinada a suposta oposição entre o chamado “ativismo judicial” e a “discricionariedade dos atos de governo”. Na oportunidade, se discutirá a respeito da efetiva existência desse antagonismo quando se põe no núcleo de investigação a natureza vinculativa dos princípios constitucionais, o seu descumprimento e o papel atribuído à função judicial de intérprete formal da Constituição.

2. Sindicabilidade dos atos de governo

No contexto da divisão das funções estatais do Estado pós-moderno, permanece com o poder judicial a atribuição de julgamento de conflitos de interesses entre os indivíduos.

Conquanto se possa atualmente registrar que as funções estatais desempenham atribuições típicas e atípicas, e também que a intercambialidade e o relacionamento interdependente são dados inafastáveis da forma como se opera o cumprimento de atribuições por cada qual, são as funções típicas as que descrevem a razão ontológica dos “poderes” do Estado.

Portanto, quando se tem por alvo a discussão acerca das atribuições do Poder Judiciário no Brasil, é óbvio que não se poderá desviar da função típica que lhe cometeu o legislador constituinte originário: a função judicante.

Mas é fato que a função judicante não se processou rigorosamente do mesmo modo ao longo da evolução histórica do Estado brasileiro.

Se é inegável reconhecer que o direito é objeto cultural, porque criado pela natureza humana e para atender humanas necessidades, não menos é compreender que o aplicador do direito deve, necessária e obrigatoriamente, realizar a tarefa judicante tomando por parâmetro as carências e necessidades dos destinatários das normas jurídicas.

Não fosse assim, teríamos de reconhecer, tristemente, que o magistrado se encontra acima do bem e do mal, convertendo-se em autêntica divindade e dotado de onisciência.

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Mas, para nosso júbilo ou nossa desgraça, seres humanos são julgados por seres humanos, fazendo com que, a par da falibilidade inerente à natureza humana, o ato de julgar se humanize por meio da destinação de provimento que, a um só tempo, dignifique e confira segurança às partes envolvidas na demanda judicial.

Todavia, como frisado linhas atrás, o direito é objeto cultural, tornando-se politicamente necessária e socialmente exigível a mudança do padrão normativo para o fim de resguardo dos interesses reputados relevantes pela coletividade.

Assim se sucedeu com o sistema do direito positivo brasileiro na medida em que assegurou o acesso ao Poder Judiciário pelo indivíduo.

Inicialmente, observe-se o que ocorreu com a Constituição de 1969, cujo art. 153, § 4º, enunciava o seguinte:

“a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido.” (grifamos)

Como se vê, a Constituição de 1969, ao positivar o princípio da inafastabilidade do controle judicial, também chamado de princípio do direito de ação, ou ainda de princípio da ubiquidade, apresentou delimitação que, à época, se compatibilizava com as pretensões de uma ciência processual ainda atada ao modelo privatístico-liberal de processo civil.

Com efeito, basta a leitura do enunciado constitucional a fim de que se conclua a respeito da limitação prevista no Texto Constitucional de 1969 no que concerne ao acesso ao Poder Judiciário, porquanto restringia o objeto das ações exclusivamente a interesses de cariz individual.

A Constituição de 1988 não adotou semelhante previsão.

O art. 5º, inciso XXXV agora estabelece que

“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”

Com isso, torna-se evidente que abriram-se as portas, pelo menos formalmente, do Poder Judiciário brasileiro não apenas para

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tornar viável a formulação de pretensão voltada à tutela jurisdicional de interesse individual, mas sobretudo de interesses transindividuais.

Mas o que são interesses transindividuais?

Transindividuais, supraindividuais, ou ainda metaindividuais são todos aqueles interessem que ultrapassam a órbita de um sujeito de direito.

A partir do fenômeno da explosão demográfica e do aumento vertiginoso do consumo, percebeu-se a ingente necessidade quanto à edição de conjunto de normas que viessem a proteger os direitos das coletividades, pois a sociedade de massa passou a conviver invariavelmente com as lesões massivas.

Logo, a proteção aos interesses transindividuais se tornou em injunção firmada pela realidade social e política a partir da segunda metade do Século XX, a ponto de a doutrina do direito constitucional ter começado a acenar para a existência dos direitos fundamentais de terceira geração: os direitos ou interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Qual a relação existente entre a mudança do parâmetro norma-tivo por meio da proteção a tais interesses e o controle judicial de políticas públicas?

É que a implementação de políticas públicas (ou simplesmente a absoluta ausência dela) deixou de habitar a seara exclusivamente do mundo político para ingressar, por definitivo, no contexto das decisões judiciais.

Por conseguinte, seja porque o sistema constitucional brasileiro pugna pela possibilidade de condução ao Poder Judiciário de interesse de qualquer espécie, seja individual ou transindividual, seja ainda em virtude de o princípio da democracia participativa comandar a apreciação judicial acerca de interesses sociais relevantes, o fato é que a discussão de políticas públicas por meio da ação civil pública se converteu em procedimento até corriqueiro no âmbito dos tribunais do País.

A mudança de mentalidade é corretamente explicada por Simone Aparecida Martins:

“(...), na Constituição Federal de 1988, além da acolhida do princípio do amplo acesso ao Judiciário, como corolário do Estado de Direito, não prevê nenhuma exceção ao mesmo.

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Consequentemente, em razão de elementar princípio de lógica jurídica: se a regra é de que deve haver possibilidade ampla de recurso ao Poder Judiciário, para a defesa da pessoa e dos direitos, qualquer exceção à regra deveria ser expressamente consignada.

A inexistência dessa expressa exceção constitucional torna destituídos de conteúdo quaisquer esforços no sentido de conferir essa qualidade aos atos políticos.”1

E diga-se mais, muito mais: se, nos dias que se passam, vimos crescer incrivelmente os pronunciamentos doutrinários que cogitam da existência de um Neoconstitucionalismo, destinado a fazer com que a Constituição seja efetivo instrumento de conformação das atividades...

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