Controle Jurisdicional da Constitucionalidade

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas3006-3030

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1. Escorço histórico

Conquanto seja possível identificar-se no Instrument of Government inglês (que se opunha à tendência expansionista de Jaime I) e na doutrina de Coke a origem moderna da ideação de atribuir-se ao Poder Judiciário competência privativa para exercer o controle da constitucionalidade, não há negar que já ao tempo das Ordenações reinóis portuguesas essa competência judiciária se encontrava prevista, ainda que de maneira algo embrionária.

Com efeito, os textos legais do período revelam a preocupação do legislador lusitano em exaltar a supremacia das Ordenações em face dos editos municipais, sempre que houvesse, ou pudesse haver, colidência destes com aquela. Verificado esse antagonismo, competia ao Corregedor declarar a nulidade da norma inferior (municipal), que era, por isso mesmo, considerada írrita, nenhuma.

Mencionemos, como exemplo, o que dispunham as Ordenações Filipinas, no Livro I, Título 58, n. 17: “Informar-se-á ex officio, se há nas Câmaras algumas posturas municipais prejudiciais aos povo e ao bem comum, posto que sejão feitas com a solenidade devida, e nos escreverá sôbre elas com seu parecer. E achando que não forão feitas, guardada a forma de nossas Ordenações, as declarará por nulas e mandará que se não guardem” (destacamos; mantivemos a grafia original).

Essa disposição das Ordenações Filipinas, a propósito, motivou o Prof. Alfredo Buzaid (Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958. p. 20) a destacar duas ideias expressivas, que foram intuídas pelo legislador português da época: a) a existência de uma ordem hierárquica de normas legais, de sorte que a inferior deveria se submeter à autoridade (ou preeminência) da superior; b) a atribuição de competência a um órgão judiciário para declarar a nulidade de lei que fosse incompatível com as Ordenações.

Em outras legislações priscas também se podia verificar, com maior ou menor intensidade, a presença do princípio segundo o qual à norma que estivesse colocada no ápice da pirâmide legal deveriam sujeitar-se as demais, sob pena de serem declaradas nulas: tal era o primado da hierarquização das normas legais, consagrado naqueles tempos e que foi legado aos tempos modernos.

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Mal se havia iniciado o século XIX, contudo, quando advém um fato de extraordinária importância para a consolidação do princípio da supremacia da lei apical, superior, relativamente às secundárias. Referimo-nos ao famoso caso entre Marbury e Madison, que foi decidido pela Suprema Corte norte-americana em 1803, sendo oportuno ressaltar, como registro histórico, que esse tribunal foi criado em 1792.

Esse caso originou-se do seguinte fato: o Presidente Adams nomeou Marbury para o cargo de Juiz de Paz no Distrito de Colúmbia. Quando Jefferson, o novo Presidente, assumiu, aquela designação de Marbury, embora estivesse assinada, não se encontrava formalmente efetivada. Ciente disso, Jefferson determinou a Madison, Secretário de Estado, que sustasse a nomeação. Inconformado com a medida, Marbury requereu à Suprema Corte uma ordem para que Madison o nomeasse. O pedido de Marbury calcou-se na Secção 13, da Lei Judiciária de 1789, conforme a qual aquele tribunal estaria autorizado a conceder mandado de segurança a pessoas que ocupassem cargo sob a jurisdição dos Estados Unidos. O juiz Marshall, contudo, argumentou que a Constituição havia fixado especialmente a jurisdição original da Suprema Corte, na qual não se incluía o poder de expedir ordem (mandamus) àqueles que ocupassem cargos federais, advertindo, ainda, que o Congresso não tinha poderes para modificar essa jurisdição. Daí a sua conclusão de que o objetivo do Congresso em conceder, por meio da Lei Judiciária de 1789, poder à Corte para expedir mandado de segurança contra os ocupantes de cargos da administração pública federal, parecia não estar amparado pela Constituição. Em razão disso, parte da mencionada Lei foi declarada nula, consagrando-se, assim, o pensamento de Marshall no sentido de que o Judiciário poderia declarar a inconstitucionalidade de atos oriundos do Congresso. Em certo trecho de seu notável e histórico voto, disse Marshall: “(...) a fraseologia particular da Constituição dos Estados Unidos confirma e corrobora o princípio essencial a todas as Constituições escritas, segundo o qual é nula qualquer lei incompatível com a Constituição; e que os Tribunais, bem como os demais departamentos, são vinculados por esse instrumento” (The Constitutional Decisons of John Marshall. Nova Iorque: Da Capo Press, 1971. v. I, p. 43).

Como bem ressaltou, mais tarde, Hamilton (O Federalista. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, LXXVIII, 1959. p. 131-134), nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode prosperar, daí por que os tribunais foram criados como uma espécie de corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com a finalidade, dentre outras coisas, de manter esta última dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. Nesse contexto, surge a interpretação como uma peculiar incumbência dos tribunais, concluindo que “Deverá ser preferida a Constituição à lei ordinária, a intenção do povo à intenção de seus mandatários. Esta conclusão não supõe, de modo algum, a superioridade do poder judicial sobre o legislativo. Somente significa que o poder do povo é superior a ambos e que, onde a vontade da legislatura, declarada em suas leis, se acha em oposição à do povo, declarada na constituição, os Juízes deverão ser governados pela última, de preferência às primeiras”.

Cumpre-nos observar que embora a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte não atribuísse, de maneira expressa, à Suprema Corte, competência para exercer a vigilância da constitucionalidade das leis, aquela Corte a chamou para si em decorrência

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da incontestável necessidade de ser mantida a suprema da Carta Magna e de ser estabelecido um efetivo equilíbrio político entre os poderes da União e dos Estados-membros, fixando cada qual no campo das atribuições que lhes eram próprias.

O controle jurisdicional da constitucionalidade, nos Estados Unidos, constitui, portanto, típico produto da jurisprudência. Willoughby (Constitution Law. I, § 1.º. p. 2), reconhece, aliás, que esse controle is a produt of American jurispudence, and peculiar to it.

Marcelo Caetano (Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. I, p. 117) acrescenta que a histórica decisão da Suprema Corte norte-americana (John Marshall à frente) trouxe uma ideia nova, desconhecida na Inglaterra: “a de que a Constituição limita os poderes dos órgãos da soberania” (destacamos).

No Brasil, somente após a proclamação da República é que a doutrina de Marshall foi incorporada ao nosso ordenamento legal.

Registre-se que, no período colonial, o órgão de cúpula de nosso Judiciário era a Casa de Suplicação (criada pelo Alvará de 10 de maio de 1808), cuja jurisdição era abrangente de todos os Tribunais das Capitanias.

Não se pode negar, entretanto, que mesmo antes da República houvesse, entre nós, uma preocupação de colocar em prática algum tipo de controle da constitucionalidade, como patenteia o Projeto de 1823, cujo art. 226 dispunha: “Todas as leis existentes, contrárias à letra e ao espírito da presente Constituição, são de nenhum vigor”.

Nada obstante, essa preocupação não se materializou da Constituição de 1826. Ao que nos parece, todavia, a omissão desse texto constitucional foi, apenas, quanto ao controle da constitucionalidade pelo Poder Judiciário, pois o art. 15, inciso IX, declarava ser da competência da Assembleia Geral “Velar pela guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação” (realçamos).

2. A matéria, nas Constituições brasileiras

Antes de passarmos ao exame da disciplina do controle da constitucionalidade no texto das Constituições de nosso país, devemos dizer que o Decreto n. 848, de 1890, que dispôs sobre a organização da Justiça Federal, atribuiu competência ao Supremo Tribunal Federal para apreciar, em grau de recurso, as sentenças definitivas dos tribunais e juízes dos Estados, “quando a validade de uma lei ou ato de qualquer Estado seja posta em questão como contrária à Constituição, aos tratados e leis federais e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou ato”.

2.1. A Constituição de 1891

Promulgada a 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituição republicana de nosso país estabelecia, em seu art. 59, § 1.º, b, integrante da Seção III (Do Poder Judiciário), Título I (Da Organização Federal), litteris:

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§ 1.º Das sentenças das justiças dos Estados em última instancia haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal:

a) quando se questionar sobre a validade ou aplicação de tratado e leis federaes, e a decisão do tribunal do Estado fôr contra ella;

b) quando se contestar a validade de...

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