Controle Judicial de Políticas Públicas: O 'Estado de Coisas Inconstitucional' e sua Adoção pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347/DF)

AutorRhans Ercibaldo Júnior Kichel da Silva
CargoAnalista jurídico no Ministério Público Federal. Especialista em Ministério Público e Estado Democrático de Direito (Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná)
Páginas22-35

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Excertos

"Pretende-se delimitar o que seriam as chamadas políticas públicas. Definido tal conceito, visa-se realizar uma análise sobre o atual papel do Poder Judiciário frente a tais políticas"

"A questão social foi a principal causa pela qual houve a consagração dos direitos fundamentais de segunda geração. Com seu reconhecimento, o que pode ser observado desde as constituições mexicana de 1917 e alemã de 1919, houve a transição do Estado liberal para o Estado social"

1. Introdução

Não obstante as inegáveis conquistas do constitucionalismo liberal, o Estado mínimo, sob o manto da igualdade formal e da legalidade, fomentou a exclusão social e a exploração humana. Especialmente após a primeira grande guerra, com o advento do Estado social (welfare state), houve um redimensionamento das funções estatais, quando passaram a ser positivados direitos fundamentais de cunho prestacional: os direitos sociais, culturais e econômicos.

O processo de implementação de tais direitos, que ocorre por meio de políticas públicas, é bas-tante deficitário e isso advém de múltiplos fatores, tais como a ine-ficiência estatal e a escassez de re-cursos. Todavia, essa constatação não deve importar o esquecimento e desprezo de tão importantes conquistas. Daí a necessidade de se abordar a discussão acerca da possibilidade do controle judicial de políticas públicas.

Nesse contexto, vale analisar o chamado "estado de coisas inconstitucional", cuja origem remete a determinados julgados da corte constitucional colombiana. Referido instituto encontra aplicação diante de um quadro de violação generalizada, contínua e sistêmica de direitos fundamentais, que atinge número amplo de pessoas, cumulado com a falta de coordenação e omissão das autoridades públicas, que deixam de adotar as medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e judiciais necessárias ao caso. Revela-se, assim, uma "falha estrutural", que acaba por prolongar e agravar a violação de direitos fundamentais.

A superação deste quadro exige a atuação conjunta de todos os órgãos responsáveis, envolvendo a expedição de ordens pelo Judiciário que impliquem mudanças estruturais, tais como a formulação, o aprimoramento de políticas e a alocação de recursos orçamentários.

Ante o reconhecimento da in-suficiência dos instrumentos tradi-cionais de jurisdição, a corte passa, então, a adotar postura mais ativa, interferindo na formulação e implementação de políticas públicas, assim como em escolhas orçamentárias. No Brasil, a questão ganhou especial relevo com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da medida cautelar na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347/DF, a qual será analisada neste trabalho.

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Nesse intento, pretende-se delimitar o que seriam as chamadas políticas públicas. Definido tal conceito, visa-se realizar uma aná-lise sobre o atual papel do Poder Judiciário frente a tais políticas. Para tanto, será necessário tecer considerações acerca dos paradigmas de atuação estatal, até que se chegue ao dito estado democrático de direito. Ainda, com o mesmo objetivo, se realizará uma breve análise sobre o neoconstitucionalismo.

Entendido o atual papel do juiz nesta nova fase do constitucionalismo, o trabalho passa a analisar pontos controvertidos e comumente arguidos em defesa daqueles que entendem que o Judiciário não deve intervir na seara das políticas públicas. Entre os principais pontos de tensão, o estudo visa a analisar a legitimidade democrática do Judiciário, a eventual violação ao princípio da separação dos poderes decorrente dessa postura e a teoria da reserva do possível.

Por derradeiro, adentra-se ao julgamento da medida cautelar na ADPF 347. Primeiramente se pretende conhecer a petição inicial, seus argumentos e os pedidos pleiteados em sede liminar e no mérito.

Após, passa-se a uma análise do que se trata o instituto do "estado de coisas inconstitucional", sua origem, requisitos e questões atinentes à sua melhor aplicação, evitando que se torne um instrumento inócuo. Ademais, será observado o posicionamento de ministros do Supremo Tribunal Federal quanto ao seu reconhecimento, diante do atual quadro do sistema penitenciário nacional.

O trabalho pretende, ainda, apreciar o que foi efetivamente julgado na medida cautelar da ADPF 347, ou seja, quais pedidos foram deferidos, rejeitados e julgados prejudicados, assim como objetiva-se tecer breve análise a respeito da repercussão do referido julgamento no tocante ao controle de políticas públicas, haja vista o reconhecimento inédito do instituto do "estado de coisas inconstitucional".

2. O controle judicial de políticas públicas
2. 1 Conceito de políticas públicas Considerando o objeto deste trabalho, primeiramente se faz necessário delimitar o conceito de políticas públicas Américo Bedê Freire Júnior assevera que, "de um modo geral, a expressão pre-tende significar um conjunto ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito"1

Em consonância com o exposto, colhemos os ensinamentos de Maria Paula Dallari Bucci:

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados - processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial - visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados.2 (grifou-se)

Conquanto as políticas públicas ganhem maior destaque no campo dos direitos sociais, cuja nota característica é justamente a demanda por prestações positivas do Estado, faz-se mister atentar ao ensinamento de Marília Lourido dos Santos, para quem as políticas públicas constituem forma de con-cretização de normas de significa-tiva relevância, que se irradiam por todas as gerações de direitos fundamentais, considerando-se a inter-relação, o condicionamento e a dependência recíproca entre elas3.

Na procura por uma definição de políticas públicas, vale expor a advertência realizada por Thiago Lima Breus, ao enfatizar que, caso sejam visualizadas como apenas mais uma das modalidades de ação do Estado, em razão da dificuldade de sua caracterização por sua natureza jurídico-política, está-se a mitigar a importância de um instrumento de realização de direitos fundamentais4.

Em razão disso, o autor frisa que, se for ampliado, pois, o conceito de políticas públicas como o mecanismo por excelência de ação estatal, estar-se-á divulgando um discurso jurídico de efetivação das normas constitucionais, em especial dos direitos fundamentais sociais, haja vista que eles terão um meio adequado e abrangente para serem realizados5.

De outro modo, mas indo ao encontro dos conceitos expostos, podemos concluir que políticas públicas são mecanismos elaborados pelo Estado para a efetivação e concretude dos direitos fundamentais, notadamente sociais, presentes na constituição ou mesmo na legislação infraconstitucional.

2. 2 Paradigmas de atuação estatal: do estado pré-moderno ao estado democrático de direito

O Estado pré-moderno, anterior à consagração da legalidade, tinha como característica marcante a pluralidade de ordenamentos (provenientes principalmente do império, mas também da igreja, dos feudos, das corporações, entre outras fontes), assim como a natureza jusnaturalista de sua fundamentação6.

Por sua vez, em superação ao antigo regime, o Estado moderno ou liberal funda suas bases na legalidade e no monopólio estatal da produção jurídica, pelo que há

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evidente proeminência do Poder Legislativo.

De acordo com Fábio Konder Comparato, a montagem deste modelo de Estado foi feita com base na substituição da vontade individual dos governantes pela autoridade da norma geral, abstrata, superior e permanente, isto é, da lei no sentido solene que a palavra apresentava em suas origens7.

A ideia de primazia da lei implicava um estado de inércia, pois ao editar uma norma legal o Estado cumpria sua missão. Nesse sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso afirma que nesse pe-ríodo vigorou uma nomocracia estática, onde a edição da norma representava o ponto ótimo e o coroamento da atividade precípua do Estado8.

POLÍTICAS PÚBLICAS SÃO MECANISMOS ELABORADOS PELO ESTADO PARA A EFETIVAÇÃO E CONCRETUDE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Neste tocante, vale atentar para análise feita pelo professor Lenio Luiz Streck:

O triunfo da vontade geral traz ínsito um deslocamento da esfera de tensão e poder do Executivo (que representava o absolutismo) para a vontade popular revolucionária (representada no Legislativo) que trinfou. Sem qualquer legitimidade, o Judiciário é colocado à margem desse processo. A própria noção de constituição não assume lugar cimeiro no velho continente,...

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