Controle Estatal dos Contratos de Consumo

AutorSolon Ivo da Silva Filho
CargoDoutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto - Portugal
Páginas141-152

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1. Introdução

A exclusão da liberdade contratual propiciou a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Fragmentada a sua capacidade civil plena, esmagada pela nova ordem contratualista, observa-se o homem consumidor como um ser desprotegido. Destituído da possibilidade de manifestar os seus anseios, mostra-se agora como um ente caracterizado pela suficiência reduzida.

Atravancou-se a vontade humana. Repleto de objetivos e desejos, foi o consumidor compelido a suprimir a expressão da sua vontade, em decorrência do dinamismo das negociações em massa.

Eis um mundo mais célere. Negociações repetidas e a envolver maior número de pessoas. Esta nova ordem, previa-se, seria apenas benéfica para o homem. Anomalias do sistema, entretanto, foram sendo percebidas e identificadas. Precisavam ser analisadas e estudadas, para que, se não fossem eliminadas, ao menos promovessem a redução das suas consequências avassaladoras.

Afastava-se a regra do vale o que está escrito. Não se podia mais dar credibilidade absoluta aos escritos contratuais, porque não havia mais oportunidade aos contratantes para as tratativas preliminares ao contrato. Exigia-se mais dinamismo, o qual se contrapunha às tradicionais regras contratualistas.

Contratos paritários deram lugar a contratos coletivos. Fornecedores de produtos e serviços agora se organizavam para a satisfação de pessoas em geral. Não se visualizava mais o ente humano contratante na sua individualidade. Apresenta-se, assim uma sociedade de consumo. “Na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou e os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam em quase todas as relações contratuais entre empresas e consumidores.”1

Toda esta ordem inovadora não podia passar ao largo do poder público. Era imprescindível uma nova positivação, no sentido de restabelecer a paridade e o equilíbrio nos contratos.

2. Intervenção estatal legislativa

Apresenta-se um Estado intervencionista. A previsão deste novo modelo não é recente. Gaston Morin, em 1937, já manifestava a “revolta dos fatos contra os códigos”2, prevendo a modificação da teoria clássica do contrato.

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Tem-se, a partir de então, uma premeditação da vindoura reestruturação da concepção contratualista tradicional. Já em fins do século XIX, com a Revolução Industrial, começavam a surgir doutrinas socialistas. Passou-se a admitir a intervenção estatal, a fim de tutelar as relações laborais e os problemas delas advindos, provenientes da formação de novas classes sociais.

A Igreja Católica também deu voz a esta nova tendência. O papa Leão XIII, através da Encíclica Rerum Novarum, proclamava uma doutrina social, mediante o estabelecimento de uma ética social. Para ele, deveria o Estado promover o bem comum, amparando o homem, principalmente os menos prestigiados.

Apesar de algumas manifestações no sentido da socialização do direito privado, a teoria da imprevisão só tomou corpo com a primeira grande guerra mundial. No Brasil, a crise econômica gerada por este conflito provocou uma era de normatizações, todas tendentes à proteção contratual.

Reconhecia o legislador brasileiro que o absolutismo contratual tinha sido atingido pela imprevisibilidade. A possibilidade de modificação do contrato, contudo, em caso de ocorrência de circunstâncias não previsíveis no momento da formalização do pacto não foi, de logo, garantida amplamente, pela norma legal. De início, apenas legislações esparsas previam a regra rebus sic stantibus:
a) Decreto 19.573/31: disciplinava a possibilidade de rescisão ou modificação dos contratos de locação, por tempo indeterminado, dos prédios de moradia, celebrados por funcionários públicos civis, ou por militares, quando removidos para servirem em outra localidade que lhes permita manter residência na da situação do prédio locado;
b) Decreto 20.632/31: previa a rescisão de contratos de locação de prédios destinados a serviços de Correios e Telégrafos, em consequência da fusão desses serviços;
c) Decreto 22.626/33: disciplinou sobre juros contratuais e cláusulas penais, moratória decenal aos devedores por hipotecas rurais ou penhores agrícolas, modificando condições anteriores de contratos formalizados a priori, sem tais restrições.3

A intervenção estatal para o restabelecimento da paridade contratual, desta forma, ainda não se encontrava expressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro. Foi no anteprojeto de Código de Obrigações (1941) que se verificou, de forma implícita e oculta, a teoria da imprevisão, cujo art. 322 assim disciplinava: “Quando por força de acontecimentos excepcionais e imprevistos ao tempo da conclusão do ato, opõe-se ao cumprimento exato desta dificuldade extrema, pode o juiz, a requerimento do interessado, e considerando

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com equanimidade a situação dos contraentes, modificar o cumprimento da obrigação, prorrogando-lhe o termo ou reduzindo-lhe a importância.”

Em 1965, o projeto de Código de Obrigações regrava a ‘resolução por onerosidade excessiva’. Os seus dispositivos, entretanto, ainda não vislumbravam a possibilidade de intervenção do Estado para recuperar o equilíbrio do contrato. Ao contrário, a única previsão era a resolução do contrato, salvo se a parte demandada, espontaneamente, com a citação, decidisse pela modificação da(s) cláusula(s) em desequilíbrio:

“Art. 346 – Nos contratos de execução diferida ou sucessiva, quando, por força de acontecimento excepcional e imprevisível ao tempo de sua celebração, a prestação de uma das partes venha a tornar-se excessivamente
onerosa, capaz de lhe ocasionar grande prejuízo e
para a outra parte lucro desmedido, pode o juiz, a
requerimento do interessado, declarar a resolução do
contrato.

Parágrafo Único – Os efeitos da sentença, então proferida, retroagem à data de citação da outra parte.

Art. 347 – A resolução do contrato poderá ser evitada, oferecendo-se o réu, dentro do prazo de contestação, a modificar razoavelmente o cumprimento do contrato.”4Também o anteprojeto de Código Civil
de 1972, ainda que de forma superficial,
consubstanciava um introito da teoria da imprevisão. Estabelecia, simplesmente, da mesma forma que o projeto de Código de Obrigações de 1965, a possibilidade de resolução do contrato em caso de onerosidade excessiva.

A socialização do contrato somente se apresentou...

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