Controle de Constitucionalidade Jurisdicional na América Latina

AutorRafaela Azevedo Dourado
Páginas143-155

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Introdução

Se o Direito é concebido como uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta de homens, surge a questão: O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que é que uma norma determinada pertence a uma deter-minada ordem? E esta questão está intimamente relacionada com esta outra: Por que é que uma norma vale, o que é que constitui o seu fundamento de validade?1

O presente artigo aborda o controle de constitucionalidade, adentrando sua razão de ser, sua base kelsiana, comparando a normativa brasileira acerca do tema com as disposições presentes em alguns dos países da América Latina. Busca-se, assim, demons-trar a existência de certa unidade nas legislações dos países citados, dentre os quais encontram-se Brasil, Argentina, Chile e Bolívia, quanto aos sistemas de controle.

I Conceito de constituição

Toda coletividade de pessoas, politicamente organizada, possui uma constituição que estabelece direitos e garantias fundamentais do ser humano, além de fundamentos e objetivos do Estado, forma e regime de governo, sistema político e eleitoral, estrutura e organização dos poderes. Atualmente, os Estados democráticos possuem constituições demo-cráticas, assim consideradas as promulgadas pelo poder constituinte, que se originam e emanam tão somente do povo, sendo esta a fonte legítima da soberania.

Sobre a imprescindibilidade de uma organização constitucional, sábias as palavras do professor Raul Ferreyra:

Toda comunidad de ciudadanos que alcanza cierto grado de convivencia se encuentra inclinada a la organización constitucional. Hasta podría conjeturase: todos los hombres se encuentran organizados o desorganizados constitucionalmente; no existiria un tercer estádio.

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En forma liminar, por constitucional se entiende fundamental; no es necesario que la constituición, e nel sentido advertido, sea escrita ni codificada.2

Para o Jurista Canotilho3, existiria um "conceito ideal" de Constituição, em sentido jurídico, imposto a partir do constitucionalismo moderno. Esse conceito reconhece como elementos de uma Constituição os seguintes elementos materiais: a) a constituição deve consagrar um sistema de garantias da liberdade; b) a constituição contém o princípio da divisão de poderes, no sentido de garantia orgânica contra os abusos dos poderes estatais; e c) a constituição deve ser escrita.

Um conceito bastante profundo, que atinge as raízes do regramento constitucional, é trazido por Jellinek, em sua obra Teoria Geral do Estado, que discorre da seguinte forma sobre Constituição:

Toda asociación permanente necesita de un principio de ordenación conforme al cual se constituya y desenvuelva su voluntad. Este principio de ordenación será el que límite la situación de sus miembros dentro de la asociación y en relación con ella. Una ordenación o estatuto de esta naturaleza, es lo que se llama una Constitución.Todo Estado, pues, necesariamente ha menester de una Constitución. Un Estado que no latuviera, sería una anarquía. El propio Estado arbitrario, en el antiguo sentido, tiene necesidad de ella, tanto cuando se trata de un Estado despótico, como cuando se trata de un comité de salvación pública de índole democrática, del tipo francés de 1793.4

Para o ilustre professor Paulo Bonavides, analisando a nova ordem constitucional brasileira, apresenta considerações relevantes sobre o sentido da norma constitucional:

A Constituinte e a Constituição significam passos fundamentais no processo de legitimação do poder em cada sociedade democrática. Todo o problema de uma nova Constituição será o de pôr termo a esse abismo entre a lei a realidade, entre a forma e o conteúdo, entre o que a nação pensa e sente e o que apenas pensam as suas elites, as quais, no passado, sempre fizeram nossas Constituições debruçando-se sobre modelos estrangeiros. Um processo constituinte legítimo não pode discriminar coletividades, pessoas e esferas de opinião, não pode ignorar a vontade política de 10 milhões de analfabetos da área rural do Nordeste, não pode mutilar a participação política do povo brasileiro, não pode ser o egoísmo das elites nem o instrumento da espoliação dos direitos políticos, não pode tampouco se fazer sem audiência daqueles que, à míngua de benefícios materiais e de cumprimento de um dever social da parte do Estado."5

Fazendo a leitura do livro El Estado y La Emergencia Permanente, tendo à frente da organização Jorge Bercholc, encontra-se o texto "Sobre la Reforma Constitucional", de autoria do professor Raúl Gustavo Ferreyra, do qual podemos destacar o seguinte:

La Constitución federal no escapa a la regla: es un texto finito, porque finita es la cantidad de interpretaciones que de él pueden realizarse. Finito significa que el texto constitucional argentino - cualquier texto constitucional - es agotable, no tiene partes fuera de sí. Por ello, en este sentido puede especularse, muy seriamente, que hay un mundo constitucionalmente posible que viene predeterminado fuertemente por el sistema constitucional originario.6

Ao conceituar as Constituições, estabelecemos as bases para discorrer sobre o controle de constitucionalidade e, em que termos o texto constitucional e as regras nele dispostas afetam todo o sistema jurídico de um Estado. Balizando o sistema normativo,

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fazemos da Constituição a norma fundamental de uma organização social, tendo por base o princípio da supremacia da Constituição.

II O controle de constitucionalidade: controle de constitucionalidade no brasil

O princípio da supremacia constitucional constitui alicerce em que se assenta o Estado Democrático de Direito, daí decorrendo o próprio controle de constitucionalidade. As Constituições, sejam escritas ou costumeiras, rígidas ou flexíveis, são dotadas de superioridade sobre as demais normas jurídicas de determinado sistema posto.

Assentando a base desta teoria - sistema piramidal que confere superioridade às chamadas normas constitucionais -, não podemos olvidar de Hans Kelsen que, em sua obra Teoria Pura do Direito, apresenta o conceito de "norma fundamental", norma esta por meio da qual todo o ordenamento jurídico estaria balizado, estando no vértice do sistema normativo. Analisada em seu contexto dinâmico - que trata, essencialmente, do fenômeno de produção das normas jurídicas, e não do seu conteúdo -, esta teoria nos dá os fundamentos para um controle formal da constitucionalidade. Assim dispõe Kelsen:

Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas pertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que o seu último fundamento de validade é a norma fundamental desta ordem. É a norma fundamental que constitui a unidade de uma pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa.7

Informa o autor austríaco, ainda, existir uma distinção entre Constituição em sentido formal e em sentido material, pois que em seu texto haveria normas que regulamentariam o próprio funcionamento da ordem jurídica posta, mas também normas que somente se referem a outros assuntos politicamente relevantes, muito embora essas últimas - a par de não possuírem conteúdo relevante à existência da ordem jurídica posta, somente median-te processo especial, submetido a requisitos mais severos, poderiam sofrer alteração. Neste sentido, e analisando o conteúdo da norma fundamental, assim dispõe:

A norma fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material que, por seu conteúdo ser havido como imediatamente evidente, seja pressuposta como a norma mais elevada da qual possam ser deduzidas - como o particular do geral - normas de conduta humana através de uma operação lógica. As normas de uma ordem jurídica têm de ser produzidas através de um ato especial de criação.(...) A sua validade só pode, em última análise, ser fundamentada através de uma norma pressuposta por força da qual nos devemos conduzir em harmonia com os comandos da autoridade que a estabelece ou em conformidade com as normas criadas através do costume. Esta norma apenas pode fornecer o fundamento de validade, não o conteúdo de validade das normas sobre ela fundadas. Estas formam um sistema dinâmico de normas. O princípio segundo o qual se opera a fundamentação da validade das normas deste sistema é um princípio dinâmico.8

Assentadas as bases kelsianas para o chamado controle de constitucionalidade, relevante apresentar conceituações doutrinárias sobre a matéria.

Informa José Afonso da Silva, "que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, (...). É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização dos seus órgãos: é nela que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas"9.

Sobre o tema, conceitua Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

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Controle de constitucionalidade é, pois, a verificação da adequação de um ato jurídico (particularmente da lei) à Constituição. Envolve a verificação tanto dos requisitos formais - subjetivos, como a competência do órgão que o editou - objetivos, como a forma, os prazos, o rito, observados em sua edição - quanto dos requisitos substanciais - respeito aos direitos e às garantias consagrados na Constituição - de constitucionalidade do ato jurídico.10

Na mesma linha, informa o constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos, afirmando que o controle de constitucionalidade "é o instrumento de garantia da...

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