Controle de constitucionalidade: uma análise das Leis 9868/99 e 9882/99

AutorProf. Gilmar Ferreira Mendes
CargoProfessor Adjunto da UNB. Mestre em Direito (UNB)
Páginas1-13

Professor Adjunto da UNB. Mestre em Direito (UNB). Doutor em Direito pela Universidade de Münster, República Federal da Alemanha - RFA. Procurador da República. Advogado-Geral da União

Texto da palestra proferida durante o Simpósio de Direito Público da Advocacia-Geral da União - 5ª Região, promovida pelo Centro de Estudos Victor Nunes Leal. (Fortaleza, 20 de novembro de 2000).

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I- Introdução

O sistema brasileiro de controle de constitucionalidade vem sofrendo, desde 1988, importantes transformações em seu perfil. Neste processo, desempenham relevante papel os recentes diplomas legislativos que disciplinam o processamento e julgamento da ADPF, ADIN e da ADC. Estamos a nos referir às Leis 9868/99 e 9882/99. Nas considerações que se seguem, vamos abordar os principais temas relativos a elas e suas repercussões em nosso sistema de controle de constitucionalidade.

II- A LEI 9882/99

Tendo origem em projeto de lei proposto pela ilustre deputada Sandra Starling, entrou em vigor em 3 de dezembro último a Lei 9882, regulamentando o art. 102,§ 1º da CF. Trata-se de diploma legal que visa dar conformação à chamada Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

O novo instituto, sem dúvida, introduz profundas alterações no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, todas com um grande potencial para aperfeiçoa-lo . Podemos listar como sendo as mais importantes: Page 2

1- Ampliação do leque de situações que podem ser objeto de controle concentrado:

Uma das mais importantes características da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - instrumento de controle concentrado de constitucionalidade - é a larga extensão do conjunto de seus possíveis objetos, fruto da abertura semântica dada pela expressão "ato do Poder Público" contida no art. 1º da lei que a disciplina. Assim, por exemplo, para além de atos de natureza normativa, o citado dispositivo está a indicar que a argüição de descumprimento há de ser aceita nos casos que envolvam a aplicação direta da Constituição - alegação de contrariedade à Constituição decorrente de decisão judicial ou controvérsia sobre interpretação adotada pelo Judiciário que não envolva a aplicação de lei ou normativo infraconstitucional.

Também no plano dos atos normativos, houve ampliação das hipóteses de controle concentrado. Assim, consoante o § único do mesmo art. 1 º, a argüição de descumprimento poderá ser utilizado para ? de forma definitiva e com eficácia geral ? solver controvérsia relevante sobre a legitimidade do direito municipal ou direito ordinário pré-constitucional em face da nova Constituição, hipótese que, até o momento, somente poderia ser apresenta mediante recurso extraordinário ao STF.

2- Antecipação das decisões sobre controvérsias constitucionais pelo STF:

Outra fundamental inovação trazida pela argüição de descumprimento é a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes, evitando que elas venham a ter um desfecho definitivo após longos anos, quando muitas situações já se consolidaram ao arrepio da "interpretação autêntica" do Supremo Tribunal Federal. Muitos podem discordar sobre a possibilidade de uma tal antecipação decisória, já que, conforme o § 1º do art. 4º, a propositura da argüição de descumprimento dependeria da inexistência de qualquer outro meio eficaz de sanar a situação inconstitucional. Vale dizer, o uso da argüição de descumprimento fica condicionada a um princípio de subsidiariedade. Tal intelecção do dispositivo em questão não se nos afigura de todo correta. Explicamos o motivo.

O pleito a ser formulado na argüição pelos órgãos ou entes legitimados dificilmente versará - pelo menos de forma direta - sobre a proteção judicial efetiva de posições específicas por eles defendidas. A exceção mais expressiva reside talvez na possibilidade de o Procurador-Geral da República, como previsto expressamente no texto legal, ou qualquer outro ente legitimado, propor a argüição de descumprimento a pedido de terceiro interessado, tendo em vista a proteção de situação específica. Ainda assim, o ajuizamento da ação e a sua admissão estarão vinculados, muito provavelmente, ao significado da solução da controvérsia para o ordenamento constitucional objetivo e não para a proteção judicial efetiva de uma situação singular.

Assim, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, Page 3 os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Nesse caso, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, ou, ainda, a ação direta por omissão, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla e geral, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental.

É o que ocorre, fundamentalmente, nos casos relativos ao controle de legitimidade do direito pré-constitucional, do direito municipal em face da Constituição Federal e nas controvérsias sobre direito pós-constitucional já revogado ou cujos efeitos já se exauriram. Nesses casos, em face do nãocabimento da ação direta de inconstitucionalidade, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade da argüição de descumprimento.

Também é possível que se apresente argüição de descumprimento com pretensão de ver declarada a constitucionalidade de lei estadual ou municipal que tenha sua legitimidade questionada nas instâncias inferiores. Tendo em vista em vista o objeto restrito da ação declaratória de constitucionalidade, não há cogitar aqui de meio eficaz para solver, de forma ampla e geral, eventual controvérsia instaurada.

Afigura-se igualmente legítimo cogitar de utilização da argüição de descumprimento nas controvérsias relacionadas com o princípio da legalidade (lei e regulamento), uma vez que, tal como assente na jurisprudência, tal hipótese não pode ser veiculada em sede de controle direto de constitucionalidade.

3- Análise de fatos e prognoses

Consoante o disposto no § 1º do art. 6º da Lei 9882, o relator do processo de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental poderá determinar o levantamento de dados de fato relevantes para o exame da questão constitucional discutida nesta ação.

O dispositivo em questão tem inegável semelhança com o § 1º do art. 9º e com o §1º do art. 20 da Lei 9868 ( LADIN), expressando, temos certeza, a mesma preocupação por parte do legislador. Mas qual é ela?

Referimo-nos à apreciação dos chamados "fatos e prognoses legislativos" no âmbito do controle de constitucionalidade.

Em verdade, há muito vem parte da dogmática apontando para a inevitabilidade da apreciação de dados da realidade no processo de interpretação e de aplicação da lei como elemento trivial a própria metodologia jurídica.

É verdade que, às vezes, uma leitura do modelo hermenêutico-clássico manifesta-se de forma radical, sugerindo que o controle de normas há de se fazer com o simples contraste entre a norma questionada e a norma Page 4 constitucional superior. Essa abordagem simplificadora tem levado o Supremo Tribunal Federal a afirmar, às vezes, que fatos controvertidos ou que demandam alguma dilação probatória não podem ser apreciados em ação direta de inconstitucionalidade.

Essa abordagem confere, equivocadamente, maior importância a uma pré-compreensão do instrumento processual do que à própria decisão do constituinte de lhe atribuir a competência para dirimir a controvérsia constitucional.

É bem verdade que, se analisarmos criteriosamente a nossa jurisprudência constitucional, verificaremos que, também entre nós, se procede ao exame ou à revisão dos fatos legislativos pressupostos ou adotados pelo legislador. É o que se verifica na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade.

Nos Estados Unidos, o chamado "Brandeis-Brief" - memorial utilizado pelo advogado Louis D. Brandeis, no "case Müller versus Oregon" (1908), contendo duas páginas dedicadas às questões jurídicas e outras 110 voltadas para os efeitos da longa duração do trabalho sobre a situação da mulherpermitiu...

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