O controle de constitucionalidade

AutorMarcelo Passamani Machado
Páginas73-124
Capítulo 3
O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
3.1. CONCEITO
Da adoção das Constituições escritas e do cânone da supremacia
formal da Constituição decorrem duas consequências fundamentais:
a necessidade de conformidade da legislação infraconstitucional com
as normas inscritas na Constituição e a exigência de um processo
legislativo mais dicultoso para a alteração do texto constitucional.
Tanto a experiência quanto o senso comum parecem demonstrar
que as simples armações de que uma Constituição não se altera por
vias ordinárias, ou que as normas infraconstitucionais devem obede-
cer aos limites por ela traçados não são capazes, por si só, de assegu-
rar a supremacia constitucional. Para tanto, torna-se indispensável a
existência de instrumentos que garantam a defesa da lei maior.
Uma das respostas a tal necessidade foi justamente o desen-
volvimento histórico do controle de constitucionalidade, que pode
ser conceituado como um mecanismo de garantia da Constituição
por meio do qual um “sujeito controlador” verica a conformi-
dade, tanto formal quanto material, de um ato normativo com a
Constituição, cuidando de assegurar a prevalência dessa última, seja
desconsiderando a norma inconstitucional no caso concreto, seja
removendo-a permanentemente da ordem jurídica ou mesmo im-
pedindo seu ingresso na mesma.1
1 Vale aqui reproduzir a liç ão de Luis Roberto Barroso: “O ordenamento ju-
rídico é um sistem a. Um sistema pressupõe ordem e unidade, devendo sua s
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Nesse ponto, importa notar que a doutrina indica um anteceden-
te bastante remoto do controle de constitucionalidade, antecedente
esse estritamente relacionado aos conceitos gregos de nomoi e pséphis-
mata, já referidos anteriormente. Segundo Cappelletti, na antiga civili-
zação ateniense, a incompatibilidade entre as leis superiores vigentes
(nomoi) e os decretos (pséphismata) editados pela Assembleia Popular
(Ecclesía), gerava dois efeitos distintos. Em primeiro lugar, havia a pos-
sibilidade de responsabilização penal do proponente do decreto, por
meio de uma espécie de “ação pública de ilegalidade”, denominada
grafè páranómon. Em segundo lugar, havia a possibilidade de os juízes
ignorarem o pséphismata viciado, julgando apenas conforme o nomoi.2
De qualquer modo, a despeito da existência de tal antecedente
milenar, cuja importância dicilmente pode ser corretamente aqui-
latada nos dias de hoje, os grandes estudiosos são unânimes em
reconhecer que o primeiro e mais inuente sistema de controle de
constitucionalidade da Idade Contemporânea foi o norte-america-
no.3 É a esse sistema que se dedica o item a seguir.
partes conviver de ma neira harmoniosa. A quebra dessa harmonia deverá
deagrar mecanismos de correção destinados a restabelecê -la. O controle
de constitucional idade é um desses mecan ismos, provavelmente o mais
importante, consist indo na vericação da compatibil idade entre uma lei ou
qualquer ato normat ivo infraconstitucional e a const ituição. Caracterizado
o contraste, o sistema provê um conjunto de medidas que visam a sua
superação, restaura ndo a unidade ameaçada” (
O controle de constitucio -
nalidade no di reito brasileiro
. 2. ed. São Paulo: Sar aiva, 2006. p. 1).
2
CaPPellett i
, Mauro.
O c ontrole judicial de constitucional idade das
leis no direito compar ado
. 2. ed. Porto Aleg re: Fabris, 1999. p. 49-51. No
mesmo sentido, cf.
Ferrei ra Filho,
Manoel Gonçalves.
O Poder Consti-
tuinte
. 4. ed. São Paulo: Sara iva, 2005. p. 3-4.
3 Apenas a título exempli cativo, entre t antos outros, cf.
Ferrei ra Fil ho,
Manoel Gonçalves.
Curso de Direito Constitucional
. 29. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002. p. 34;
Barroso
, Luís Roberto.
O controle de constitu-
cionalidade no direito brasileiro
. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 5;
CaPPellet ti
, Mauro.
O c ontrole judicial de constitucional idade das
leis no direito comparado
. 2. ed. Porto Aleg re: Fabris, 1999. p. 57-63.
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Capítulo 3
3.2. O MODELO NORTE-AMERICANO
É lugar comum nos atuais estudos nacionais sobre o tema do
controle de constitucionalidade a referência ao direito norte-ameri-
cano e, em especial, ao caso Marbury v. Madison (1803). É evidente
que tal referência é necessária, embora nem sempre ela seja feita de
modo contextualizado ou minimamente aprofundado. Tendo isso
em vista, o objetivo do presente item é expor, com algum nível de
detalhamento, o contexto doutrinário, jurisprudencial e histórico do
famoso leading case, bem como apresentar os principais desenvolvi-
mentos do judicial review norte-americano até seu estágio atual.
3.2.1. Precedentes
Como visto anteriormente, a ideia de que há leis superiores às
demais não era desconhecida na antiguidade grega, muito menos na
Europa medieval. Contudo, os estudos acerca das origens do judicial
review norte-americano normalmente partem de um ponto histori-
camente bem mais recente, mais precisamente da decisão do hoje
célebre Dr. Bonham’s case, em 1610, por sir Edward Coke.4
O caso originou-se a partir de um apelo de Thomas Bonham, o
qual, sob a alegação de exercício não autorizado da prossão, havia
sido condenado, multado e preso pela Royal College of Physicians,
instituição que havia recebido do Parlamento inglês os poderes de
regular e comandar a prática da medicina em Londres. No julga-
mento, sir Edward Coke, chefe de justiça da England’s Court of
4 Tal corte h istórico parece correto e será adotado nesta obra, pois, como
será exposto a seguir, o Dr. Bonham’s case de Coke, além de ser conhecido
por g uras da el ite revolucioná ria norte-americ ana, como James Otis Jr.,
também inue nciou inegavel mente um dos ma iores mestres do d ireito in-
glês, sir Wil liam Blackstone, cuja obra
Commentaries on the Laws of
England
, publicada em 1769, fez parte da prática jurídica e da formação
do pensamento dos jurista s das colônias inglesas na Améric a do Norte.
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