Control and ban: the decline of panoptic discipline in contemporary punitive logic/ Vigiar e banir: o declinio da disciplina panoptica na logica punitiva contemporanea.

AutorPastana, Debora Regina

Aqui, o trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem a comunhao social. (frase escrita no topo da fachada do predio da antiga Penitenciaria do Estado--hoje Penitenciaria Feminina de Santana)

Modernidade e disciplina panoptica

Celebre e a analise de Foucault sobre o controle social (1) disciplinar na modernidade. Suas observacoes acerca da adequacao dos propositos benthanianos ao projeto iluminista, que em ultima analise representa parte significativa da identidade moderna, repercutem na propria compreensao da dinamica do controle nesse momento, pelo menos nas modalidades mais evidentes (2). A interpretacao foucaultiana nos mostra como a vigilancia permanente serviu, na modernidade, como instrumento disciplinar, garantindo a sociedade burguesa uma habil ferramenta nao apenas para consolidar valores, mas, sobretudo, para impedir resistencias. "Docilizando os corpos", buscava-se o adestramento. Sentimentos, pensamentos e acoes passavam a reproduzir uma visao de mundo, por meio da disciplina, e com isso legitimavam as relacoes de poder existentes. E nesse sentido que Foucault (1996, p. 185) destaca que "as disciplinas funcionam cada vez mais com tecnicas que fabricam individuos uteis".

Na modalidade penal, os metodos disciplinares objetivavam um controle que pudesse de alguma forma regenerar o desviante. Moralizando condutas e modelando comportamentos, o sistema penal na modernidade tinha o papel de, sem o uso exclusivo da forca, consolidar a logica capitalista. A prisao (3) certamente foi a pena mais adequada para esse tipo de objetivo.

O fato e que enquanto perduraram justificativas iluministas para o sistema punitivo, suas finalidades foram associadas a disciplina utilitarista. Sob essa perspectiva a pena de prisao nada mais era que o exercicio continuado e ininterrupto do treinamento correcional.

A ideologia da pena era a do treinamento, mediante controle estrito da conduta do apenado, sem que este pudesse dispor de um so instante de privacidade. Essa ideologia sera expandida e formulada pelos diversos criadores de regimes e sistemas "progressivos", mas no fundo seguira sendo a mesma: vigilancia, arrependimento, aprendizagem, "moralizacao" (trabalhar para a felicidade). Em geral, corresponde a forma de trabalho industrial, tal como era concebida e praticada na epoca: a vigilancia estrita do trabalhador na fabrica, o controle permanente pelo capataz, a impossibilidade de dispor de tempo livre durante o trabalho, etc. (ZAFFARONI; PIERANGELI 2002, p. 279).

Enfim, o controle social foi concebido, nesse momento, como treinamento para os desordeiros da modernidade. Conter as massas carentes e, ao mesmo tempo, disciplina-las para o trabalho fabril era o objetivo central da maioria dos projetos de desenvolvimento da sociedade capitalista. Tal estrategia antropofagica, como sugeriu Levi-Strauss (1996), baseava-se no permanente enfrentamento da alteridade a partir da domesticacao e consequente homogeneizacao do comportamento desviante. Nesse contexto o delinquente era visto como um desajustado carente de reabilitacao. Principios penais-previdenciarios atribuiam a punicao um carater reformador. A reabilitacao buscava aliar controle com cuidado, punicao com correcao, ordem com bem estar.

Assim, o modelo disciplinar de punicao comecava a formatar um discurso que apregoava a necessidade de absorver o desviante por meio do treinamento para uma nova ordem. A justificativa politica para a punicao, nesse diapasao, era justamente o carater reformador caracteristico da prisao. Essa justificativa, de certa forma, vai perdurar ate o fim do seculo XX.

A metafora panoptica benthaniana foi interpretada por Foucault como simbolo dos desejos modernos de disciplina e assimilacao. O Direito Penal, nesse contexto, funcionava como modalidade de controle que buscava readaptar delinquentes adequando o comportamento desviante aos valores triunfantes da sociedade moderna, vale dizer, ordem, trabalho e progresso urbano-industrial.

A hipotese foucaultiana para prisao era a de que ela esteve "desde sua origem, ligada a um projeto de transformacao dos individuos (...). Desde o comeco a prisao devia ser um instrumento tao aperfeicoado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisao sobre os individuos". (FOUCAULT, 1995, p 131).

Acaso devemos nos admirar que a prisao celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatorio, suas instancias de vigilancia e de notacao, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funcoes do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisao se pareca com as fabricas, com as escolas, com os quarteis, com os hospitais, e todos se parecam com as prisoes? (FOUCAULT, 1996, p 199).

Assim, com essa leitura pedagogica e correcional, a pena privativa de liberdade direcionava-se diretamente ao criminoso e o fim ultimo de sua aplicacao era sua ressocializacao (4). Por meio da reclusao temporaria, ainda que por longo periodo, o desviante aprenderia padroes comportamentais e valores eticos suficientes para auxilia-lo na futura reintegracao a coletividade, apos o cumprimento da pena a ele imposta.

Na modernidade esse modelo de controle, de fato, foi amplamente utilizado e o carcere foi o mais emblematico lugar em que o panoptico se materializou. A ciencia juridica e o pensamento criminologico (5) assimilaram esse raciocinio utilitarista e passaram a apregoar as ditas "funcoes corretivas da pena" na literatura produzida nos seculos XIX e XX.

O Panoptico pode ser utilizado como maquina de fazer experiencias, modificar o comportamento, treinar ou retreinar os individuos. Experimentar remedios e verificar seus efeitos. Tentar diversas punicoes sobre os prisioneiros, segundo seus crimes e temperamento, e procurar as mais eficazes (...). O Panoptico e um local privilegiado para tornar possivel a experiencia com homens, e para analisar com toda certeza as transformacoes que se pode obter neles. (FOUCAULT, 1996, p 179/180)

Nesse sentido, o ideal ressocializador, materializado por meio da teoria da prevencao especial positiva (6), foi defendido de forma incisiva pela corrente teorica intitulada "nova defesa social" (7), logo apos a segunda guerra mundial. Principalmente nos anos setenta, o objetivo primordial dessa corrente foi sustentar cientificamente programas de reabilitacao norteamericanos e europeus. Naquele momento buscava-se justificar a punicao sem contestar diretamente o ideal de bem estar que permeava as politicas publicas norte-americanas e europeias. Para manter certa coerencia discursiva a punicao nao poderia ser apenas um castigo, mas acima de tudo uma estrategia de inclusao por meio da correcao. Esse discurso foi logo assimilado por paises como Brasil, Argentina, Chile, Venezuela, Paraguai e Colombia.

A partir do momento em que se suprime a ideia de vinganca, que outrora era atributo do soberano, do soberano lesado em sua propria soberania pelo crime, a punicao so pode ter significacao numa tecnologia de reforma. E os juizes, eles mesmos, sem saber e sem se dar conta, passaram, pouco a pouco, de um veredicto que tinha ainda conotacoes punitivas, a um veredicto que nao podem justificar em seu proprio vocabulario, a nao ser na condicao de que seja transformador do individuo. (FOUCAULT, 1995, p 138)

No entanto, tal concepcao, mesmo hegemonica, comeca a dar sinais de exaurimento ja na decada seguinte com a critica acida das correntes teoricas radicais (8) que refutavam a ressocializacao sinalizando para o carater estigmatizante da pena privativa de liberdade. Atestavam tambem o quanto a prisao deseducava, acabando por produzir efeitos contrarios, vale dizer, o aumento do desvio e da inseguranca.

Sabemos que a execucao penal nao socializa nem cumpre nenhuma das funcoes "re" que se lhe inventaram ("re"--socializacao, personalizacao, individualizacao, educacao, insercao, etc.), que tudo isso e mentira e que pretender ensinar um homem a viver em sociedade mediante o carcere e, como disse Carlos Alberto Elbert, algo tao absurdo como pretender treinar alguem para jogar futebol dentro de um elevador (ZAFFARONI, 1991, p. 223).

Desta maneira, restou evidente que os discursos modernos de disciplinamento e controle inclusivo eram estratagemas da classe dominante para perpetuar seu dominio tambem na atuacao concreta das instituicoes penais, reproduzindo simbolicamente uma gigantesca violencia estrutural materializada na seletividade da punicao e na criminalizacao da miseria.

A reincidencia, contudo, "e a constatacao mais evidente de que tudo aquilo que se deseja, em termos de transformacao do individuo, nao foi alcancado" (SALLA; LOURENCO, 2014, p. 378). De fato, o confinamento destinado a reforma do carater mais do que produzir obediencia, reproduziu indignacao. A seletividade punitiva em grande medida contribuiu para desvendar a falacia da funcao regeneradora da pena de prisao, sem, contudo desqualifica-la. Nisso Foucault e categorico ao destacar que a prisao nao fracassa apenas por nao atingir tal objetivo declarado. A regeneracao e o objetivo declarado, porem o controle se da essencialmente na demarcacao do desvio e principalmente na eleicao dos desviantes. Dito de outro modo, a prisao produz o delinquente, o identifica e estabelece sua conformacao social.

Nessa sociedade panoptica, cuja defesa onipresente e o encarceramento, o delinquente nao esta fora da lei; mas desde o inicio, dentro dela, na propria essencia da lei ou pelo menos bem no meio desses mecanismos que fazem passar insensivelmente da disciplina a lei, do desvio a infracao. Se e verdade que a prisao sanciona a delinquencia, esta no essencial e fabricada num encarceramento e por um encarceramento que a prisao no fim de contas continua por sua vez. A prisao e apenas a continuacao natural, nada mais que um grau superior dessa hierarquia percorrida passo a passo. O delinquente e um produto de instituicao. (FOUCAULT, 1996, 263).

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