A Contribuição do Constitucionalismo Popular para o Fortalecimento da Accountability Social sobre o Judiciário

AutorClaudia Maria Barbosa - Sylvia Maria Cortês Bonifácio de Araujo
CargoDoutora e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)
Páginas40-61

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A Contribuição do Constitucionalismo Popular para o Fortalecimento da Accountability Social sobre o Judiciário

The contribution of popular constitutionalism to strengthening social accountability over the judiciary

Claudia Maria Barbosa*
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)

Sylvia Maria Cortês Bonifácio de Araujo**

Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR)

1. Introdução

O mundo convive com um fenômeno de expansão do papel do Poder Judiciário que teve início pelo desenvolvimento do modelo de judicial review norte-americano, ainda no início do século XIX. Com o Segundo Pós-Guerra, emerge com força um novo tipo de constitucionalismo que atribuiu maior força normativa à Constituição e reconheceu novos e conceitualmente amplos direitos que, associados a uma conjuntura de descrédito na política majoritária (Executivo e Legislativo), levaram a uma hipertrofia do Judiciário que se alastrou pelos diversos continentes.

O poder decisório sobre as questões mais controversas da sociedade encontra-se atualmente nas mãos das cortes constitucionais – a quem é reconhecida a prerrogativa de proferir a “última palavra” sobre a interpretação da constituição. Tal reconhecimento, entretanto, traz consigo um sem número de críticas no campo da Teoria do Direito e da Filosofia Política, especialmente no que diz respeito à chamada tensão contramajoritária, que

* Doutora e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná

** Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Direito, Estado e Sociedade n.53 p. 40 a 61 jul/dez 2018

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contesta a legitimidade democrática do protagonismo do judiciário no âmbito de tomada de decisões acerca do significado constitucional.

Uma dessas críticas refere-se à usurpação do papel do povo na determinação do significado da constituição pelo judiciário, fundada na teoria de Larry Kramer, assentada em seu livro The People Themselves: popular constitutionalism and judicial review. Tal controle popular parece ter sido perdido com o passar do tempo e do crescimento do controle de constitucionalidade. O desafio imposto à teoria do constitucionalismo popular atualmente, portanto, é demonstrar como referido controle popular da constituição pode se tornar efetivo.

Pretende-se, com o presente artigo indicar caminhos que percorrem teorias concernentes à accountability social, espécie de controle dos órgãos do Estado pela pressão popular. Busca-se, nesse sentido, fazer uma aproximação entre as propostas de controle do significado da constituição pelo povo e as ferramentas de exercício da accountability social, especialmente a mobilização social e a mídia.

Para tanto, parte-se de um panorama geral da noção de supremacia do Poder Judiciário – também traduzida nos termos ativismo judicial, judicialização da política e protagonismo do Judiciário. Seguem-se as propostas do constitucionalismo popular sobre o tema. Após, apresenta-se a ideia de accountability social, buscando ressaltar a possibilidade de seu exercício para fiscalização e interferência nas decisões do Poder Judiciário, ou seja, para realizar as propostas do constitucionalismo popular.

Partindo de uma pesquisa essencialmente bibliográfica, utiliza-se uma abordagem qualitativa que prioriza fontes teóricas e estudos conceituais e dirige-se ao exame analítico da matéria que constitui seu objeto.

2. O Protagonismo do Poder Judiciário

Inspirados no desenho institucional norte-americano, diferentes países democráticos atribuem atualmente a interpretação e aplicação da Constituição às cortes constitucionais, nas quais os juízes proferem a palavra final acerca do significado da Constituição. Os demais poderes e, especialmente, os cidadãos interpretam a constituição em seu cotidiano, mas não chegam a ter poder decisório sobre ela. Esse desenho institucional está expresso na Carta brasileira, que assegura ao Supremo Tribunal Federal o papel de guardião da Constituição.

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Embora esse desenho constitua-se hoje um dos principais tópicos de discussão e pesquisa na Teoria do Direito e na Filosofia Política, sua origem remonta à experiência constitucional norte-americana ainda no início do século XIX, na formulação do que hoje é conhecido como controle de constitucionalidade. Em 1803, a Suprema Corte norte-americana inovou na jurisprudência ao julgar inconstitucional uma lei federal e declarar sua nulidade frente às normas constitucionais, trazendo para si um poder de judicial review sem precedentes e sem previsão expressa na Carta Constitucional de 1787. Por essa razão, Carlos Alexandre de Azevedo Campos1

afirma “ter o controle judicial de constitucionalidade já nascido argumentativamente ativista – estrategicamente ativista”, sendo ainda hoje um dos principais objetos de estudo da teoria constitucional norte-americana.

Não obstante, a supremacia das cortes no que tange à interpretação e aplicação da constituição não é mais uma exclusividade norte-americana desde o Segundo Pós-Guerra, quando o Estado constitucional de direito se consolidou na Europa continental2. A constituição passou a ter valor normativo e o controle de constitucionalidade das leis foi fortalecido ou criado para garantir sua eficácia. A partir desse período, o modelo de judicial review antes restrito aos Estados Unidos da América espalhou-se pelo continente europeu e, mais tarde, pelo mundo, como consequência dos fatores políticos e jurídicos expostos a seguir.

Além disso, verificou-se no Pós-Guerra, como resposta às atrocidades cometidas em nome de regimes totalitários e de leis que negavam o valor da pessoa humana, a superação e até mesmo repúdio à cultura jurídica positivista e o retorno ao pensamento kantiano de dignidade e moralidade do ser humano. Diante dessa reaproximação do direito com a moral e da expansão das soluções jurídicas para além das normas, houve também a superação do formalismo jurídico, e o juiz – antes adstrito a um raciocínio subsuntivo que era tido com técnico – passou a ser coparticipante na produção do significado da norma.

Ademais, com a constituição se tornando centro do sistema jurídico, no século XX, o direito, antes privatista, torna-se cada vez mais publicizado, ou seja, o direito público começa a adentrar na esfera privada, e há uma maior necessidade da atuação do juiz para dirimir os conflitos entre tais categorias de normas.

1 CAMPOS, 2014, p. 30.

2 BARROSO, 2012a.

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Referida expansão do poder judiciário constituiu uma mudança drástica no modo de pensar e praticar o direito, uma vez que o modelo anterior, de Estado legislativo de direito, era centrado no parlamento como poder central e na constituição como um documento político, “cujas normas não eram aplicáveis diretamente, ficando na dependência de desenvolvimento pelo legislador ou administrador”3.

Esse movimento de protagonismo dos Poderes foi descrito por Luiz Werneck Vianna4que assinala que após a Segunda Guerra, seja na doutrina ou no âmbito da opinião pública,

(...) à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução de um mundo arrasado pela guerra, (...) seguiu-se a do Legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições de demo-cracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, para o chamado Terceiro Poder e a questão substantiva nele contida – Justiça.

Referido protagonismo do Poder Judiciário não é uma peculiaridade local, pelo contrário, tem se expressado em todos os continentes e, de maneira geral, encontra sua justificativa histórica na conjuntura política jurisdicional ambientada após o fim da Segunda Guerra Mundial. Por meio dele, a jurisdição constitucional tem avançado sobre a competência dos Poderes Executivo e Legislativo, proferindo decisões por diversas vezes de tendência contramajoritária e despertando a atenção não só dos juristas, mas da mídia e de toda a sociedade.

Embora em expansão, o protagonismo do Judiciário, é fenômeno prevalente apenas em Estados democráticos. É o que ressalta Claudia Maria Barbosa5, para quem a forte atuação do Poder Judiciário, especialmente no que diz respeito à jurisdição constitucional “retomou sua força nas últimas décadas porque vários países da Europa, América Latina e África que passaram por processos recentes de redemocratização depositaram a esperança da construção de sociedades democráticas e dignas nas suas respectivas Constituições”. Países autoritários, via de regra, não admitem a transferên-

3 BARROSO, 2012a, p. 3.

4 VIANNA, 1993, p. 263

5 BARBOSA, 2013, p. 172.

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cia de poder ao Judiciário; países com democracias mais consolidadas e um maior equilíbrio, por seu turno, costumam priorizar os debates em torno do significado da constituição à esfera política, “locus” do debate público qualificado.

O protagonismo do judiciário descreve o fenômeno da judicialização da política, que foi identificado na doutrina jurídica e das ciências sociais a partir dos estudos de C. Neal Tate e Tobjorn Vallinder, em 1995, com o trabalho intitulado The Global Expansion of Judicial Power, em que foram lançadas as bases de um estudo comparado da atuação do Poder Judiciário.

Para Tate e Vallinder6, a judicialização da política se revela pela utilização de métodos tradicionalmente jurídicos na resolução de controvérsias eminentemente...

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