O contratos de transferência de tecnologia e os limites à autonomia privada

AutorValkíria Aparecida Lopes Ferraro; Jussara Seixas Conselvan
Páginas65-87

    Este artigo foi extraído do projeto de dissertação de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina, na área de concentração de Direito Civil.

Valkíria Aparecida Lopes Ferraro;. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Professora titular da Universidade Estadual de Londrina. Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Email: mariana99@sercomtel.com.br

Jussara Seixas Conselvan. Mestranda em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito da Integração e do Comércio Internacional pela Universidade Estadual de Londrina em Convênio com a Universidad Rey Juan Carlos de Madrid. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina. Advogada. Email: conselva@sercomtel.com.br.

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Introdução

No atual processo de globalização, a tecnologia é de fundamental importância. As empresas, em especial, necessitam de inovação tecnológica para serem competitivas nos mercados interno e externo.

Com o aumento do fluxo de tecnologia, principalmente com a ampliação dos mercados em razão do comércio internacional e da integração econômica, os negócios jurídicos cresceram substancialmente.

Nesse sentido, os contratos são fundamentais, uma vez que a transferência de tecnologia é realizada, em grande parte, através de contratos privados.

Todavia, uma característica distintiva dos contratos de transferência de tecnologia é a intervenção estatal e, por conseguinte, a limitação da liberdade de contratar das partes (DANNEMANN, 2001).

Assim, é oportuno verificar quais são os limites impostos à autonomia das partes pelos Estados, em seu âmbito interno, e pela ordem internacional. Para isso, insta saber por que e como é exercido o controle na formação e execução dos contratos e quais são as normas cogentes que regulam o seu conteúdo, principalmente no Brasil.

Para entender as razões do controle, é necessária uma reflexão sobre a intervenção estatal, especialmente no que tange à contratação entre entes privados, tendo em vista a perspectiva do Direito Econômico.

Dentro desse panorama, os Contratos de Transferência de Tecnologia serão investigados com o objetivo de determinar suas principais modalidades e cláusulas, bem como compreender o que é tecnologia e sua transferência, partindo da hipótese de que são um importante instrumento jurídico, cada vez mais utilizado no comércio internacional.

É importante observar, ainda, a questão da autonomia privada nos contratos de transferência de tecnologia. Na seqüência, perpassando a normativa internacional, tratar-se-á de suas limitações pela normativa nacional, no caso a ordem jurídica brasileira, com destaque para o papel do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

1 A intervenção estatal nos contratos

Durante o século XX, a atuação do Estado no campo econômico cresceu notoriamente. A figura do Estado intervencionista se supera, pois a palavra intervenção dá a idéia de transitoriedade, uma ingerência seguida de retirada. No entanto, "o Estado não mais intervém no sistema econômico. Integra-o" (NUSDEO, 2001, p. 186).

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à intervenção estatal no mercado denomina-se sistema econômico dual ou misto, e há quatro modalidades pelas quais o Estado pode se fazer presente: direção, absorção, participação e indução (EROS GRAU, apud NUSDEO, 2001, p. 195).

Neste trabalho, verifica-se a primeira modalidade - direção - em que há a imposição de uma conduta obrigatória aos agentes econômicos privados, através de normas de caráter legal ou regulamentar. Um exemplo característico de ação estatal por direção é o dirigismo contratual, em que há determinações cogentes quanto a cláusulas que devem ou não constar de contratos privados de caráter civil ou comercial (NUSDEO, 2001).

Assim, a liberdade contratual é aceita dentro de determinados parâmetros, sofre restrições pela ampliação da idéia de ordem pública e pela aplicação, nas devidas proporções, do conceito de função social.

Quando essa ação estatal era fundamentada no poder de polícia, as restrições ou limitações à liberdade tinham um caráter negativo, ou seja, impedir malefícios provocados por certas atividades.

Ao se atribuir a idéia de uma função social ao contrato, a visão passou a ser positiva, ou seja, não somente deixar de criar efeitos nocivos, mas criar benefícios à sociedade, ainda que indiretos (NUSDEO, 2001).

No entanto, o sistema dual comporta controvérsias sobre o quanto de Estado e o quanto de mercado devem coexistir e em que setores o Estado deve atuar. Não há respostas conclusivas para essas questões, pois o quanto dependerá de decisões políticas baseadas nas doutrinas econômicas de cada sociedade. Ademais, a decisão de quais setores requerem a presença do Estado também é de cunho político.

Diante disso, as Constituições passaram a incluir direitos de caráter econômico e social e a contemplar, expressamente ou não, programas para o aperfeiçoamento do sistema econômico, além das garantias individuais e a organização do Estado.

Passaram a ser denominadas constituições programa (por fixarem objetivos ou metas) e levaram à superação da idéia das constituições garantia. Também são chamadas de constituições social-democratas. Os autores alemães falam em constituição econômica, que fornece as bases para a ação do Estado na vida econômica.

A finalidade desses dispositivos de caráter econômico é estabelecer a possibilidade jurídica de o Estado se fazer presente no processo econômico, dentro de limites e condições. São denominadas de normas programáticas, pois indicam objetivos a serem implementados e servem de parâmetros para outras normas.

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No Brasil, a Constituição Federal de 1988 (CF 88) traça algumas diretrizes, contando com dois capítulos nesse sentido: Da Ordem Econômica e Financeira (VII) e Da Ordem Social (VIII).

Os arts. 170 a 174 da CF 88 definem o sistema econômico brasileiro como dual ou misto, configurando-se as várias modalidades de ação do Estado: direção, absorção, participação, indução (NUSDEO, 2001).

Uma vez que a incidência da política econômica sobre questões relacionadas à tecnologia é fundamental para a realização dos objetivos traçados para o Estado, de acordo com os arts. 218 e 219 da CF 88, verifica-se um fundamento para a intervenção específica nos contratos de transferência de tecnologia.

Dessa forma, a intervenção do Estado busca, além do efetivo equilíbrio entre as partes, fazer do contrato de transferência de tecnologia um instrumento útil à condução da política econômica.

Com isso, entende-se que, a partir da intervenção estatal, são criados limites à autonomia das partes nos contratos de transferência de tecnologia. Para tratar melhor dessa questão com base na normativa internacional e nacional, tratar-se-á de esclarecer, na seqüência, termos e definições relativos a esses contratos.

2 A contratação de transferência de tecnologia

Importa conceituar tecnologia e sua transferência, bem como o contrato de transferência de tecnologia, visto que há diferenças nos diversos níveis em que são tratados, a saber, na legislação, doutrina e jurisprudência, no âmbito nacional e internacional. Além disso, são destacadas as cláusulas relevantes nesses contratos.

2. 1 A Tecnologia

Tecnologia, objeto de contratação, pode ter distintas definições. Uma delas refere-se à aplicação do conhecimento científico no meio técnico, para obter novo produto, processo industrial ou serviço. É um dos fatores empresariais e se insere nos direitos de propriedade intelectual (PIMENTEL, 2005).

Assim, "tecnologia abrange a maior parte das formas de conhecimento industrial, não só os resultados da investigação científica, como também a sua aplicação industrial, produção e comercialização" (ANTUNES; MANSO, 1993, p. 43).

De forma ampla, há autores que entendem que a tecnologia se soma aos fatores de produção clássicos: natureza, capital, trabalho e organização da atividade econômica (CORRÊA, 2005).

Então, "a tecnologia pode ser definida como um conjunto de conhecimentos aplicáveis na atividade produtiva" (CORRÊA, 2005, p. 31).

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A tecnologia pode ser classificada em tecnologia patenteada e não patenteada. A primeira refere-se ao conhecimento das técnicas formalmente protegidas pelo Direito (patentes). A segunda, aos conhecimentos não patenteáveis (PIMENTEL, 1994), ou mesmo aqueles conhecimentos que poderiam ser patenteados, mas que são mantidos em segredo ou deixam de ser protegidos, recaindo no domínio público.

2. 2 A Transferência de Tecnologia

A transferência de tecnologia é um negócio jurídico pelo qual uma das partes obriga-se a transmitir conhecimentos aplicáveis a um processo produtivo, sendo remunerado pela outra (CORRÊA, 2005), ou, ainda, quando há troca de conhecimentos ou comunhão de patentes.

Há quem considere que a transferência ocorre quando há o repasse do conhecimento, não a mudança de título. Esta foi a posição de 120 multinacionais em uma pesquisa do Estado Americano (Council of Americas), em 1978 (BARBOSA, 2003).

Isto porque a transferência de tecnologia entre países desenvolvidos pode gerar novas tecnologias, constituindo um fator de produção de tecnologia nova. Já a transferência para países subdesenvolvidos aparece somente como um fator de produção de bens e serviços, uma vez que não se...

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