Contratos de garantia e garantias autônomas

AutorLuiz Mario Galbetti - Rafael Vanzella
Páginas44-69

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I - Introdução
  1. A dogmática do direito privado ainda está à procura de técnicas satisfatórias de qualificação e regramento dos contratos atípicos. Quem acredita que a disciplina desses últimos se plasma e exaure nas normas gerais sobre obrigações e contratos, menosprezando, destarte, o relevantíssimo papel que a predisposição legal dos contratos em espécie exerce nas operações de direito privado, terá, no máximo, uma boa ideia. Ela dificilmente sairá do papel. Até porque já a tiveram, e ela pouquíssimo ecoou na experiência jurídica. Desconhecem-se, com efeito, contratos atípicos que não sofram intervenções da disciplina dos contratos especiais a eles análogos,1 por mais indesejável à promoção da autonomia contratual que seja essa prática.

  2. Este estudo nasceu de uma disciplina brilhante do curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a qual, com indistinto privilégio, seus autores cursaram. Alcides Toma-setti Júnior, mestre, concentrou seus esforços na elaboração conjunta e democrática de uma daquelas técnicas de qualificação e

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    regramento dos contratos atípicos, chamada, por inspiração nos civilistas italianos, teoria dos tipos contratuais gerais. Essa última expressão a denominação mesma daquela disciplina. Com olhos de hoje, percebemos que o salto qualitativo do nosso aprendizado não esteve na adaptação de um sofisticado saber alienígena à realidade jurídica nacional. Com maior acerto, as lições do mestre serviram como um importante ingrediente ético das reflexões que sobrevivem e sobreviverão por muito tempo àquela disciplina: trata-se, em uma única expressão, do cultivo da problematicidade, que alguns espíritos buscam afugentar dos modelos dogmáticos a serem propostos, sem perceber como isso interfere deleteria-mente nas especificidades científicas do pensamento jurídico. Ao professor Toma-setti, nossos agradecimentos e homenagens. Mas, sem desmerecer esse necessário esclarecimento em forma de devida reverência, voltemos ao tema que ora nos toca.

  3. São muitos os contratos, alguns deles já nominados pelos usos e costumes contratuais, que desempenham, na prática, funções de garantia, sem que se enquadrem nos tipos de contratos de garantia conhecidos e regulados pelo direito legislado. Um deles, que já mereceu tratamento no Brasil,2 é o contrato autônomo de garantia, fonte contratual de garantias autônomas. Diante da atipicidade dessa e de outras operações contratuais, emerge o problema característico a todo e qualquer contrato atípico que se apresenta sobre a mesa do jurista: como identificá-lo juridicamente? Qual disciplina será aplicável a ele?

  4. A proposta de construção de um tipo contratual geral de garantia, ou contrato de garantia em gênero, vem para ao menos tentativamente solucionar esses ques-tionamentos e tantos outros deles decorrentes. Uma disciplina comum, suficientemente abstrata, que apanhe todos os contratos de garantia conhecidos, seria o resul-tado dessa construção, e permitiria conduzir-lhe as atípicas operações contratuais de garantia, entre elas as garantias autônomas, extraindo, assim, sua identidade e seu regramento, ainda que básicos. A primeira análise desenvolvida por este estudo pretende contribuir para aquela construção; a segunda, elaborar sobre as garantias autônomas a partir do modelo construído, ainda que seja, tão somente, para oferecer-lhes uma distinção causal, mesmo que panorâmica, para com as demais espécies, ou subtipos, de contrato de garantia.

  5. Reservar a expressão contrato de garantia para designar um tipo contratual geral revela uma opção pela terminologia da doutrina italiana das garantias contratuais.3

    A doutrina alemã toma, por seu turno, a expressão contrato de garantia (Garan-tievertrag) não como tipo contratual geral, e, sim, como o contrato constitutivo do que os italianos denominam, precisamente, garantias autônomas. Em seu sentido alemão, a expressão é também utilizada por Pontes de Miranda:4

    "Contrato de garantia é aquêle pelo qual alguém promete responder, no todo ou em parte, pelo risco que o outro figurante possa sofrer em negócio jurídico de que seja figurante. Os exemplos melhor esclarecem: B, por sugestão de A, montou hotel na pequena cidade, e A assume a responsabilidade pelos défices que anualmente ocorram, ou pelos lucros de x por cento; B, a quem A deu em locação a loja, monta ar-

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    mazém depois de C lhe haver garantido que a renda será de x por cento, ou, próximo a findar-se o contrato, que A o renovará.

    "O contrato de garantia não é acessório, e sim independente. Não se promete o adimplemento por parte de devedor principal, mas indenização de dano sofrido, ou determinada renda, ou outro resultado."

  6. Adotada a expressão contrato de garantia como designativa de um tipo contratual geral, definem-se agora, preliminarmente, e de modo estipulante, nas lindes deste estudo, (1) tipo contratual geral e (2) garantia.

    6.1 Para a compreensão dos tipos contratuais gerais é indispensável um delineamento prévio - como propõe Tomasetti Júnior5 - da clássica tensão entre lei e fato social no âmbito da temática contratual.

    Consoante seus pressupostos, concebe-se que certas operações de mercado não se subsumam aos tipos contratuais, isto é, aos modelos legais que, conformando recorrentes operações econômicas, configuram os contratos típicos. Dessa circunstância, decorre o fenômeno dos contratos atípicos.

    Concebe-se, outrossim, que os contratos atípicos, e mesmo contratos típicos que, concretamente, desempenham funções discrepantes daquelas abstratamente definidas em lei, possam confrontar-se com os esquemas legais.

    Dessa colisão entre práticas negociais contínuas e ordenamento legal, e na tentativa de acomodar esse fenômeno, advém a teorização dos tipos contratuais gerais.

    Ora, diante da tensão entre regramen-to contratual legal e arranjo negocial - e aqui se vale, novamente e continuamente, de Tomasetti Júnior - caberia ao intérprete enquadrar esse último, através da expansi-vidade do primeiro, em modelos que, compreendendo setores - não mais operações individualizadas - do processo econômico, conformam exigências mais gerais do mercado. Vale dizer, então, modelos setoriais, ou - para além dos modelos legais, consistentes nos contratos (típicos) em espécie -tipos contratuais gerais, concernentes, na dicção de Bianca,6 às exigências gerais da vida em sociedade captada como um complexo de relacionamentos. Daí tais modelos, ou tipos, possibilitarem uma disciplina contratual adequada às variantes que emergem da prática social.7

    Diante disso, construir o contrato de garantia como um tipo contratual geral implica admitir:

    1. a existência de operações econômicas que não se subsumem aos tipos contratuais a que o ordenamento legal atribui a função, abstrata, de garantia. Assume-se, então, que são continuamente celebrados contratos atípicos que desempenham função de garantia (tais como o contrato autônomo de garantia) e contratos típicos que, apesar de abstratamente desempenharem outra função, concretamente desempenham função de garantia (tais como os negócios fiduciários);

    2. a confrontação, não rara, desses contratos atípicos e desses contratos típicos com função concreta discrepante da função abstrata com o regramento contratual legal;

    3. que, diante dessa confrontação, o intérprete é chamado a analisar os contratos especiais (em espécie) que desempenham função de garantia - tipos contratuais a que o ordenamento legal atribui a função, abstrata, de garantia, tais como o contrato de fiança, hipoteca, penhor, etc. -para que, expandindo-os, possa delinear o

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      setor da vida econômica em que operam. Em última análise, isso implica identificar um mercado de garantias constituídas por contratos;

    4. que, neste setor, ainda no seio dessa atividade hermenêutica, possam ser enquadrados os contratos atípicos, bem como os típicos com função concreta diferente da abstrata. Isso permite identificar, assim, a quais exigências do mercado tais contratos correspondem e, por consequência, construir o contrato de garantia como um tipo contratual geral a fim de dispor de uma disciplina jurídica aderente às necessidades socioeconômicas que os possam justificar.

      6.2 No âmbito da dogmática jurídica, o termo garantia é polissêmico, cujos significados podem ser extraídos em consideração ao contexto no qual a palavra se insere. Observando, contudo, a utilização do termo garantia em diferentes contextos, é pertinente uma breve investigação acerca de uma eventual raiz comum dos diversos significados, visando auxiliar o emprego de tal da palavra, com o rigor que a boa técnica determina.

      6.2.1 Nesse sentido, no contexto da teoria geral da relação jurídica, emprega--se o termo garantia para designar um dos elementos da relação jurídica, ao lado dos sujeitos, dos objetos e dos fatos jurídicos.8

      Trata-se da ação (em sentido material), conforme dispunha o art. 75 do revogado Código Civil de 1916, ou seja, do conjunto de meios coercitivos de que está investido o titular da pretensão, em face do destinatário de dever comportamental que o inadimpliu.9 Do ponto de vista estrutural, portanto, garantia é uma posição jurídica subjetiva ativa complexa; quanto à sua função, efetiva a pretensão, conferindo segurança às pessoas de seus titulares.10

      6.2.2 Daí se vê a confusão terminoló-gica desencadeada pelo art. 189 do Código Civil. A ação, que no Estado de Direito é predominantemente exercida através de remédios processuais ("ações", em sentido processual), nasce com a violação da pretensão. Essa, como posição jurídica subjetiva ativa elementar, integra o direito sub-jetivo desde o momento em que este é atribuído a alguém, como efeito de fato...

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