Contratos coligados

AutorJosé Virgílio Lopes Enei
Páginas111-128

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I - introdução
A) Precedentes, Contratos atípicos "vs " contratos coligados

No direito romano pré-justiniano, os tipos contratuais eram taxativos, não merecendo tuLela jurídica os acordos que não se enquadrassem nas categorias contratuais então conhecidas.1 Tal rigorismo foi sendo gradualmente abrandado após Justiniano.

As primeiras codificações civis após a formação dos Estados modernos, como o Código Civil francês de 1804, já admitiam e reconheciam como válidos e eficazes os contratos atípicos ou inominados,2 vale dizer, aquelas categorias contratuais que não encontrassem disciplina própria eespecffi-

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ca na lei, embora estivessem sujeitas ao regime geral dos contratos.

A industrialização, o desenvolvimento tecnológico e tantas outras conquistas da sociedade contemporânea intensificaram a complexidade das relações sociais e económicas, o que aumentou substancialmente o emprego e a importância, e porque não dizer a função social, dos ditos contratos atípicos.

Dada a crescente importância do contrato atípico, a doutrina debruçou-se sobre o tema, lendo desenvolvido classificações para tal género contratual bem como diversas teorias na busca do regime jurídico a ele aplicável.

A doutrina costuma classificar os contratos atípicos em contratos atípicos propriamente ditos e contratos mistos, resultando estes últimos da combinação de "contratos completos, prestações típicas inteiras ou elementos mais simples".3

Dentre as diversas teorias que buscam desvendar o regime jurídico aplicável aos contratos atípicos destacam-sc as teorias da absorção, da combinação, da analogia e da criação, esta última também conhecida por teoria do interesse dominante. De acordo com a teoria da absorção, proposta por Lotmar e Asquini, dentre outros, identifi-car-se-ia a prestação ou o elemento principal do contrato atípico para se lhe aplicar as regras próprias do contrato típico que melhor se afinasse com tal prestação ou elemento. As prestações ou os elementos acessórios e secundários do contrato atípico seriam então considerados absorvidos pela qualificação atribuída à prestação ou elemento principal. Segundo a teoria da combinação, adoiada dentre outros por Cariota Ferrara e Hoeniger, cada prestação ou elemento do contrato atípico sujeitar-se-ia às regras do contrato típico ao qual tal prestação ou elemento se referisse. Por sua vez, a teoria da analogia, defendida dentre outros por Messineo, preconiza que um determi-nado contrato atípico seja regido pelas regras do contrato típico que com ele mais se assemelhe. Por fim, com base na teoria do interesse dominante ou da criação, defendida dentre outros por Ermeccerus e Lehmam, deu-se maior importância à finalidade do contrato e ã operação económica por ele carreada, propondo-se a construção, caso acaso, do regime jurídico aplicável aocon-irato atípico a partir da identificação dos princípios e regras contratuais mais compatíveis com a finalidade e a operação económica almejada. Nenhuma dessas teorias, todavia, restou imune às críticas, sobretudo por se revelarem incapazes de solucionar, de forma satisfatória, todas as variantes de contrato atípico, nos diversos contextos em que ele pode se apresentar. Daí porque a maior parte da doutrina defende a escolha da teoria aplicável de acordo com as circunstâncias de cada contrato atípico considerado, sendo possível que determinado contexto negociai recomende a aplicação de uma determinada teoria em detrimento das demais.

Em que pese a importância crescente dos contratos atípicos, a medida que as relações sociais foram se tornando ainda mais complexas, sobretudo a partir do último século, passou-se a observar não só o fenómeno da combinação de prestações e elementos contratuais diversos num único contrato, dito atípico, como também a celebração de dois ou mais contratos unidos por um vínculo, contratos esses referidos pela doutrina pátna, em sua maior parte, corno contratos coligados.

B) Terminologia

A expressão, contudo, está longe de ser unânime, embora seja compartilhada também pelas doutrinas italiana (ilcollega-mento negociais) e portuguesa, esta última também adotando a expressão união de contratos4. Na França prefere-se o termo

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grupos de contratos (tes gwupes de contrais); no direito da Common Law, adota-se mais comumente a expressão contratos ligados (linked contracts ou contract net-work); na Espanha, consagrou-se a expressão contratos conexos; enquanto na Argentina, empregam-se as expressões grupos de contratos, contratos em cadeia (cadena de contratos), ou mesmo rede de contratos.

Preferimos a expressão contratos coligados no direito brasileiro mais pelo seu uso mais disseminado,5 e menos pelas implicações que tal escolha possa sugerir. Rodrigo Xavier Leonardo, em excelente Dissertação de Mestrado sobre o tema aplicado ao contexto do mercado habitacional, emprega, com muita propriedade, a expressão redes contratuais, sob o fundamento de que tal expressão "ressalta não apenas a reunião de contratos voltados para uma determinada finalidade económica, mas também um nexo sistemático entre os diversos contratos".6 Há quem, entre nós, também empregue a expressão contratos conexos ou grupos de contratos.7

C) Conceito

Os contratos coligados são, portanto, fruto da hipercomplexidade das relações sociais e económicas da atualidade, bem como da crescente especialização das ati-vidades e divisão de trabalho. Operações económicas que outrora podiam ser concretizadas por um único contrato, fosse típico ou atípico, agora, em virtude da maior complexidade destas e do envolvimento de um maior número de partes, exigem a celebração de diversos contratos interligados.

Os contratos coligados diferenciam-se, assim, dos contratos atípicos mistos na medida em que não correspondem à mera soma de prestações de natureza diversa a formar um único e particular contrato, mas à união de contratos que, embora preservando a sua individualidade estrutural, comungam de uma mesma finalidade económica.

Embora cada contrato preserve os seus elementos categoriais próprios e inderro-gáveis (que o conduzam a um determinado tipo contratual ou mesmo à categoria dos contratos em geral, na hipótese de contrato atípico), a causa final (função prático-so-cial) passa a ser dada não por cada contrato individualmente considerado mas pelo conjunto, surgindo daí, portanto, uma causa sistemática ou supracontratual.8

É defensável até que os contratos preservem a sua causa final individual, mas é certo que na coligação haverá uma causa finai sistemática que unirá o conjunto, e que só será alcançável por meio do cumprimento de todos os contratos coligados.

Nesse sentido a definição de Rodrigo Xavier Leonardo bem ressalta o nexo causal e sistemático que une os contratos coligados: "Entende-se por redes contratuais a coordenação sistemática de contratos, diferenciados estruturalmente, porém interligados por um articulado e estável nexo económico, funcional e sistemático".9 O ca-ráter sistemático dos contratos vinculados é ainda corroborado pelas considerações de Ricardo Lorenzetti, segundo o qual:

"La teoria jurídica que permita explicar y establecer regias para solucionar los conflictos que presentan Ias redes, no puede dejar de considerar Ia novedad que ellas presentan, El enfoque no puede basarse en el contrato, sino en Ia interacción de un grupo de contratos que actúan en forma relacio-

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nada, de modo que el contrato es un instrumento para Ia realización de negócios.

"Este enfoque permite establecer que hay una finalidad negociai supracontractual que justifica el nacimientoy funcionam ien-to de una red. El grupo que surge de esa maneia, no es solo una unión convencional de contratos, que puede ser analizada mediante el examen de los vínculos individua-les. Se requiere una comprensión dei sistema y por ello, de una teoria sistemática,"10

Também digno de nota é o conceito proposto por Ana López Frias, em sua monografia sobre os contratos conexos - referência obrigatória no estudo do tema: "Para nosotros se está ante el fenómeno de Ia conexión contractual cuando vários suje-tos celebran dos o más contratos distintos que presentan unaestrecha vinculación funcional entre si por razón de su propia natu-raleza o de Ia finalidad global que los informa, vinculación que es o puede ser juridicamente relevante".11

D) Plano do trabalho

Feitas essas considerações gerais sobre o tema dos contratos coligados, ofereceremos a seguir uma visão comparada dos contratos coligados (Parte II). Proporemos então uma breve classificação das espécies de coligação contratual (Parte III), expondo alguns exemplos de contratos coligados praticados atualmente (Parte IV), para mais adiante tratar de algumas das questões jurídicas mais relevantes que são suscitadas pelo tema, incluindo ai'a questão da propagação da invalidade e ineficácia entre os contratos; a questão do abrandamento da teoria da relatividade dos contratos (não produção de efeitos em relação a terceiros) e a questão da interpretação dos contratos coligados (Parte V). Ao final, apresentaremos breve conclusão (Parte VI).

II- Os...

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