O contrato preliminar e a análise económica do direito

AutorJuliana Pitelli da Guia
Páginas243-254

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I Introdução

Há muitos anos o contrato preliminar vem se consolidando como um instituto de grande utilidade nas relações económicas, sendo admitido em diversos ordenamentos. Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro só veio a tratar explicitamente do instituto no atual Código Civil (Lei n. 10.406/2002), que dedica a ele seus arts. 462 a 466. Não obstante a importância do reconhecimento legal de tão relevante instituto, a disciplina conferida pelo legislador brasileiro não está livre de falhas.

O presente trabalho se propõe a identificar essas falhas, através da aplicação dos princípios da chamada análise económica do direito à área de contratos, em especial, ao contrato preliminar. Além disso, propõe-se a identificar as possíveis consequências dos problemas apresentados por essa dis-ciplina legal, muito embora não possam ser mais do que previsões, uma vez que uma lei só pode ter seus efeitos completamente reconhecidos após sua aplicação ao longo do tempo.

Para esse fim, a exposição a seguir apresenta-se divida em quatro partes. A primeira dedica-se ao estudo do contrato preliminar, de sua disciplina no atual Código Civil, juntamente com a origem desta. A segunda parte visa à aplicação da análise económica do direito ao contrato preliminar, com especial enfoque às noções de contratos incompletos, assimetria de informações e de inadimplemento eficiente. A terceira parte, por sua vez, ressalta a importância de se considerar a função econô-mico-social dos institutos jurídicos e do direito em geral. Finalmente, a quarta parte apresenta uma conclusão acerca da disciplina legal do contrato preliminar e os resultados de seu estudo à luz da análise económica do direito.

II O contrato preliminar

O contrato preliminar, segundo a concepção mais amplamente difundida na dou-

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trina, é o contrato mediante o qual as partes se obrigam a concluir, no futuro, um outro contrato, a que se dá o nome de contrato definitivo ou principal.1 Ele não é fruto de uma elaboração puramente teórica de juristas, tendo surgido como resposta a necessidades práticas do ambiente comercial e se revelado como um instrumento negociai de extrema importância nas contratações, razão pela qual suscita o interesse dos agentes económicos e chama a atenção de doutrinadores mesmo em ordenamentos em que não há normas específicas a respeito do instituto.

Em certas ocasiões, muito embora exista um interesse das partes em realizar uma contratação, há razões que não permitem que esta se realize de imediato, ou pelo menos pareça mais conveniente às partes realizá-la em momento posterior. O contrato preliminar, nesse sentido, confere às partes maior intervalo de tempo para ajustar as condições do negócio aos seus interesses, mas já com a existência de um vínculo entre elas, buscando garantir a conclusão da operação em definitivo. Ele possibilita que o vínculo contratual se forme de maneira progressiva, apresentando uma função preparatória e instrumental à estipulação do contrato definitivo.

É um contrato utilizado com frequência nos negócios de venda e compra, em especial em operações económicas complexas, como a alienação de participações societárias de uma companhia. No que diz respeito aos negócios imobiliários de venda e compra, contratos preliminares apresentam relevância tal que a própria legislação tributária brasileira traz a sua celebração como fato gerador do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).2

Até o advento do atual Código Civil (Lei n. 10.406/2002), o contrato preliminar não dispunha de disciplina legislativa específica. Não obstante isso, já era objeto de estudo da doutrina, que tratava largamente da promessa de contratar, instituto muito utilizado na prática, em especial em negócios de venda e compra de imóveis (promessa de venda e compra). O primeiro indício de regulamentação legislativa envolvendo o contrato preliminar surgiu com o Decreto-lei n. 58/1937, que dispunha sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações, através da realização de compromissos de venda e compra.

O art. 15 do decreto previa a possibilidade de que os compromissários exigissem á outorga da escritura de venda e compra (meio apto a transferir a propriedade, mediante registro), desde que completassem o pagamento das prestações e estivessem em dia com impostos. Além disso, em caso de recusa do compromitente vendedor em passar a escritura, era conferida a possibilidade de que tal fosse exigido em juízo, situação em que, persistindo a recusa, permitia-se que o juiz, por sentença, adjudicasse os lotes aos compradores.3

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Conferiu-se tratamento legislativo mais favorável ao compromissado, como forma de resolver um verdadeiro problema social que se instalava, uma vez que mesmo após pagas as prestações, os compradores de lotes muitas vezes não recebiam a escritura de venda e compra do vendedor.

A ausência de previsão legislativa específica fez com que a doutrina e a jurisprudência desempenhassem importante papel no que toca ao desenvolvimento da disciplina do contrato preliminar. Nesse sentido, especial destaque teve o chamado "caso Disco",4 julgado pelo Supremo Tribunal Federal e que pode ser considerado verdadeiro leading case em matéria de contrato preliminar. Discutia-se no caso a qualificação jurídica - como contrato preliminar ou simples minutas - de um contrato celebrado entre Supermercados Pão de Açúcar S/A e a Distribuidora de Comestíveis Disco S/A, cujo objeto era a transferência de controle acionário dessa última para a primeira. Surgiram divergências entre as duas empresas a respeito de algumas disposições do mencionado contrato, de forma que se iniciou uma disputa judicial relacionada à efetiva transferência das ações da Disco.

A discussão acerca da caracterização ou não do contrato celebrado como um contrato preliminar surgiu em razão do disposto no art. 639 do Código de Processo Civil, que assim dispunha:5 "se aquele que se compromete a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído pelo título, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado". Fosse o acordo entre as partes entendido como um contrato preliminar, seria possível obter a sentença mencionada no artigo; caso contrário, isso não seria possível.

O Ministro Moreira Alves, Relator do processo, votou pela inexistência de um contrato preliminar no caso analisado, no que foi seguido pela maioria dos Ministros. Entendeu que o contrato celebrado não se caracterizava como um contrato preliminar, pois para tanto deveria conter todos os elementos do contrato definitivo, havendo acordo sobre todos os pontos relacionados ao seu objeto. Note-se que tal decisão não qualificou propriamente o contrato preliminar, uma vez que o interesse em celebrar esse tipo de contrato reside justamente na possibilidade de se criar um vínculo contratual que ofereça maior garantia da efe-tivação do negócio - no futuro - quando ainda não estão presentes todas as condições e elementos necessários à contratação definitiva.

Não obstante as criticas ao entendimento adotado no mencionado acórdão, ele parece ter inspirado o legislador do atual Código Civil ao disciplinar o contrato preliminar. Com efeito, o art. 462 determina que "o contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado". Muito embora tenha sido excluída qualquer exigência de forma específica, não se pode deixar de notar o maior enfoque que foi conferido à estrutura do contrato preliminar, em detrimento de sua função, uma vez que ao se vincular a qualificação de um contrato preliminar à existência dos requisitos do contrato definitivo acaba-se por confundir àquele com esse último. Dessa forma, o legislador acabou por impor uma restrição ao uso de instituto tão difundido na prática comercial.

Contudo, esse não parece ser o único problema da disciplina legislativa do instituto, pois ela também apresenta falhas no que diz respeito aos efeitos do inadim-plemento do contrato preliminar. O Código Civil prevê a possibilidade de que qualquer das partes exija da outra a celebração do contrato definitivo, dentro de prazo determinado, desde que não haja, no contrato preliminar, cláusula de arrependimento (art.

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463). Além disso, esgotado esse prazo sem que o contrato definitivo tenha sido celebrado, a lei permite que o juiz, a pedido da parte interessada, supra a vontade da parte inadimplente, conferindo através de uma sentença o caráter de definitivo ao contrato preliminar (art. 464).6 Finalmente, se uma das partes não cumprir o contrato preliminar, a lei autoriza a outra parte a considerá-lo desfeito e pleitear o pagamento de perdas e danos (art. 465).

Neste aspecto o legislador do Código Civil parece ter se inspirado mesmo no mencionado Decreto-lei n. 58/1937, desconsiderando que tal diploma legal surgiu para solucionar um problema bastante específico, conforme ressaltado acima. Assim sendo, não deveria servir como inspiração à disciplina legal de um instituto de uso geral como o contrato preliminar.

A possibilidade de conversão do contrato preliminar em definitivo por uma decisão judicial também se mostra como uma restrição imposta pela lei ao uso do referido instituto. Se as partes optam pela celebração de um contrato preliminar é porque não há, no momento, interesse ou conveniência em se contratar de forma definitiva ea sua conversão em definitivo pode não vir a atender completamente o melhor interesse de nenhuma das partes.

O contrato preliminar se mostra especialmente útil em situações em que...

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