Contrato de Fornecimento de Água no Ordenamento Português

AutorSofia Pita e Costa
CargoAssessora jurídica da ACOP - Associação de Consumidores de Portugal
Páginas177-204

Page 178

Excertos

"O fornecimento de água é tido como um serviço de natureza essencial que se espraia pelos diversos setores de atividade económica, sem esquecer o seu enorme valor social e ambiental"

"A prestação de serviços de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos consubstancia serviços que visam a prossecução do interesse público, atingindo um conjunto indeterminado de pessoas"

"O regime específico dos serviços públicos essenciais alarga o âmbito da proteção jurídica de quem contrata estes serviços, considerando para o efeito o conceito de utente"

"No domínio da prestação de serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, a celebração do contrato assenta nos comumente designados contratos de adesão"

"O contrato de prestação de serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais urbanas, garantindo a proteção do utilizador do serviço solicitado, é formalizado através de documento escrito, cuja cópia é entregue no momento da celebração"

Page 179

CAPÍTULO I Princípios aplicáveis

A água é suporte de vida, é essencial a todos os seres vivos.

Na Grécia Antiga, Tales de Mileto defendia que o elemento água era o princípio de todas as coisas, era a substância primordial que constituía a essência do universo. Ao longo dos tempos, a água foi assumindo um papel fundamental no desenvolvimento das civilizações, até, hodiernamente, se tornar um recurso imprescindível do quotidiano, nas mais diversas atividades da vida humana. Por esse motivo, o direito à água consagrou-se como direito humano essencial à sobrevivência, à qualidade e à plena fruição da vida.

Assim, nas sociedades modernas, o fornecimento de água é tido como um serviço de natureza essencial que se espraia pelos diversos setores de atividade económica, sem esquecer o seu enorme valor social e ambiental.

Em Portugal, a opção do legislador foi a de definir, entre os diversos serviços públicos prestados pelo Estado ou concessionários, aqueles considerados como essenciais. Entre eles encontra-se a prestação de serviços de água, que visa responder às necessidades básicas e essenciais dos cidadãos, sendo, por isso, classificada pelo ordenamento jurídico como serviço público essencial, que a lei fundamental protege enquanto direitos económicos, sociais e culturais, a que o Estado ou concessionários se obrigam a respeitar, a proteger e a facultar o acesso ao abastecimento de água e ao saneamento de águas residuais.

No que concerne ao regime jurídico aplicável à exploração e gestão dos serviços de água, que engloba, simultaneamente, o fornecimento de água e drenagem de águas residuais e o serviço de gestão de resíduos urbanos, aquele assenta num sistema de atribuições partilhadas entre os municípios (sistemas municipais e sistemas intermunicipais) e o Estado (sistemas multimunicipais), cfr. Lei 159/99, de 14 de setembro, Decreto-Lei 379/93, de 5 de novembro, alterado pelo Decreto-Lei 195/2009, de 20 de agosto, e Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.

Deste modo, sendo serviços essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança coletiva das populações, às atividades económicas e à proteção do ambiente, a sua concretização deve nortear-se pelos princípios gerais enunciados nas alíneas do n. 1 do artigo 5º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto: princípio da promoção tendencial da sua universalidade e a garantia da igualdade no acesso; princípio da garantia da qualidade do serviço e da proteção dos interesses dos utilizadores; princípio do desenvolvimento da transparência na prestação dos serviços; princípio da protecão da saúde pública e do ambiente;

Page 180

princípio da garantia da eficiência e melhoria contínua na utilização dos recursos afetos, respondendo à evolução das exigências técnicas e às melhores técnicas ambientais disponíveis; princípio da promoção da solidariedade económica e social, do correto ordenamento do território e do desenvolvimento regional.

No essencial, a atividade destes serviços deve pautar-se por critérios que permitam a todos os cidadãos ter acesso à água em condições adequadas ao consumo humano e ao saneamento de forma contínua, respondendo assim às necessidades básicas de todos os utilizadores, sem esquecer, claro, a segurança ambiental, cfr. artigo 8º do Decreto-Lei 306/2007, de 27 de agosto. Bem como o preço a pagar deve ser justo, de molde a não comprometer a capacidade de pagamento de outros serviços essenciais à vida de todos aqueles que deles necessitam.

CAPÍTULO II
Seção I Da formação do contrato
1. Preliminares

A prestação de serviços de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, consubstanciam serviços que visam a prossecução do interesse público, atingindo um conjunto indeterminado de pessoas; todavia, este tem de ser prosseguido sem esquecer o parâmetro fundamental do enquadramento desta atividade, isto é, sem olvidar os direitos e interesses legítimos dos utilizadores dos serviços, cfr. n. 1 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa.

Não obstante a sua classificação como serviços de caráter público, estes são de índole universal e essencial, daí que a sua prestação esteja sujeita a obrigações específicas, traduzidas na imposição e cumprimento destas, harmonizando o interesse público e os direitos individuais, de forma que a realização do interesse comum não extinga ou limite os direitos e interesses dos utilizadores dos serviços, ou, fazendo-o, o faça com a necessária proporcionalidade, cfr. artigo 3º do Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.

Neste domínio, a relação de prestação de serviços de água, de saneamento e de gestão de resíduos assenta na celebração de um negócio jurídico bilateral, num contrato entre as entidades gestoras (públicas ou privadas) que exploram o serviço público essencial de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais e os utilizadores destes mesmos serviços, distinguindo-se entre utilizadores domésticos

Page 181

(serviços utilizados para fins habitacionais) e utilizadores não domésticos (serviços utilizados para outros fins), sujeito a normas de cariz específico, dado que se está perante uma relação jurídica à qual subjaz um contrato de consumo, que tem de obedecer a determinados requisitos, indispensáveis à salvaguarda dos direitos daqueles que com as entidades gestoras contratam.

O regime específico dos serviços públicos essenciais alarga o âmbito da proteção jurídica de quem contrata estes serviços, considerando para o efeito o conceito de utente. Ou seja, os agentes económicos prestadores de serviços públicos essenciais obrigam-se não só perante a pessoa singular, que seja consumidor tal como definido na Lei 24/96, de 31 de julho, alterado pelo Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, e pela Lei 10/2013, de 28 de janeiro - Lei de Defesa do Consumidor (LDC) -, no n. 1 do artigo 2º: "(...) todo aquele a quem sejam (...) prestados serviços (...), destinados a uso não profissional, (...)", mas também perante a pessoa coletiva.

É a estes sujeitos, pessoa singular e pessoa coletiva, pública ou privada, os utilizadores finais, que não têm como objeto de atividade a prestação desse mesmo serviço a terceiros, a quem deve ser assegurado de forma continuada o serviço de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, cfr. Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto.

A relação jurídica estabelecida entre a entidade gestora dos serviços (de água, de saneamento e de recolha de resíduos) e os utilizadores finais, para além de se encontrar estabelecida pelo Decreto-Lei 194/2009, de 20 de agosto, encontra-se, igualmente, submetida às normas particulares do regime jurídico da Lei 23/96, de 26 de julho (alterada pelas Leis 12/2008, de 26 de fevereiro, 24/2008, de 2 de junho, 6/2011, de 10 de março, 44/2011, de 22 de junho, e 10/2013, de 28 de janeiro), vulgo Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE), que regula de forma especial a prestação dos serviços considerados fundamentais. Esta tem como escopo a proteção dos utentes dos serviços públicos essenciais, de molde a assegurar o equilíbrio das partes nas relações jurídicas que se estabelecem nos diversos setores de prestação de serviços, cfr. artigo 1º da LSPE.

Desde logo, a proteção reflete-se nos utilizadores que adquirem os serviços para fins alheios à sua atividade profissional, não lhes podendo ser exigida qualquer caução no momento da contratação, cfr. n. 2 do artigo 1º do Decreto-Lei 195/99, de 8 de junho, alterado pelo Decreto-Lei 100/2007, de 2 de abril, bem como não podem ser cobrados juros comerciais em caso de mora no pagamento da utilização do serviço, como previsto no artigo 559º do Código Civil, que remete para a Portaria 291/2003, de 8 de abril, que fixa em 4% a taxa anual do juro a cobrar.

Page 182

2. Dos requisitos de fundo

Na celebração do negócio jurídico bilateral são duas as declarações negociais indispensáveis à formação do contrato: a proposta e a aceitação, que, não obstante o fato de serem manifestações de vontade opostas, convergem, com vistas a produzir o efeito jurídico unitário desejado. É...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT