O contrato de atleta profissional ? Natureza jurídica

AutorJorge Miguel Acosta Soares
Páginas62-70

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Como foi visto no capítulo anterior, a profissionalização da atividade do atleta de futebol surgiu somente em 23 de janeiro de 1933, quando sete clubes do Rio de Janeiro — Fluminense, Vasco, América, Bangu, Botafogo, Flamengo e São Cristóvão — decidiram em Assembleia, com um placar muito apertado — 4 X 3 —, oficializar o contrato de seus atletas, pagando-lhes uma remuneração mensal. Dessa data em diante, o jogador era profissional, mas para todos os efeitos legais não era um “trabalhador”. Esse status somente foi adquirido mais de 40 anos depois, com a Lei n. 6.354/76, que encerrou quase meio século de discussões sobre qual seria a natureza da relação existente entre o jogador profissional de futebol e seu clube. Desde então, o clube tornou-se “empregador” e o atleta, “empregado”, e a relação entre eles foi definida por um “contrato de trabalho”, regido pelas “normas gerais da legislação do trabalho”126.

Durante esse tempo, a natureza jurídica da relação empolgou os debates doutrinários, uma vez que a falta de definição legal permitia diferentes e divergentes interpretações. De certo, sabia-se que o contrato do atleta profissional não estava regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nem especificado no Código Civil, restando-lhe certo limbo jurídico.

3.1. Polêmica pré-normativa

Os juristas interessados nos problemas desportivos dividiam-se entre várias teses, que a rigor poderiam ser sintetizadas em três posições. Para alguns, se tratava de um contrato inominado, de natureza civil. Outros, entendiam que a relação clube-atleta estaria inserida em um novo ramo do direito, o Direito Desportivo, com especificidades e peculiaridades que o distinguiam. Já um terceiro grupo enxergava claros contornos trabalhistas, colocando os atletas ao lado de todo o conjunto de trabalhadores. Todos se embasavam em argumentos respeitáveis, com fundamentos jurídicos sólidos, mas inconciliáveis. A solução somente foi dada pela lei, que fez prevalecer a terceira acepção. A evolução legislativa posterior, com a publicação da Lei n. 9.615/98, apenas veio referendar o texto normativo de 1976, encerrando de forma definitiva a questão. A análise das três vertentes, mesmo que de forma sumária, é importante para entender a evolução e a institucionalização da profissão de atleta, sempre lembrando que a divergência não era apenas técnica e jurídica, mas também dotada de forte componente ideológico.

3.1.1. Natureza civil do contrato

Para tentar sistematizar as teses que defendem a natureza civil do contrato entre os atletas e os clubes, vamos nos ater a um antigo trabalho do professor José Cretella Júnior, escrito, durante a década de 1950, ainda em meio à polêmica127.

Uma primeira distinção feita por essa corrente, bem representada pelo professor Cretella, dizia respeito à própria figura do atleta. O clube de futebol assim como a empresa comum seriam conhecidos do público e dotados de notoriedade. O esportista profissional também, assim como a agremiação que o contratava, era dotado de notoriedade. Sua personalidade, suas características e habilidades individuais eram elementos que marcavam e definiam o exercício de sua atividade128. Já o trabalhador, o operário, não. Este fazia parte do conjunto de trabalhadores que, indistintamente, exercia suas atividades independentes de habilidade e conhecimento específico. Sua individualidade, sua notoriedade, não interfeririam diretamente no cumprimento do contrato de trabalho.

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Os que defendiam a natureza civilista argumentavam que, antes do regime da CLT, o contrato assinado entre os atletas e os clubes era o de locação de serviços (locatio operarum), regulado pelo art. 1.216, e seguintes, do Código Civil de 1916, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Os chamados “Contratos de Esporte” seriam um gênero da espécie Contratos de Locação de Serviços. A entrada em vigor da consolidação trabalhista não teria alterado a situação, uma vez que nada tratou a respeito da profissão.

As diferenças entre os jogadores e as demais categorias de trabalhadores abrigadas pela proteção da CLT eram estabelecidas a partir da comparação entre elas. Os elementos dessa comparação eram: moléstias e acidentes de trabalho, direito de greve e modo de contratação. Dessa forma chegavam à conclusão definitiva de que a atividade do atleta não poderia ser regida pelas leis trabalhistas, sendo sua natureza jurídica claramente civil.

Um acidente de um operário, em seu local de trabalho, configuraria um acidente de trabalho, regulado por lei própria. Da mesma forma, as moléstias contraídas nas fábricas e nos locais de trabalho gerariam uma série de direitos e deveres com implicações diretas no contrato de trabalho. Essas doenças seriam tão típicas que permitiram sua classificação e a identificação dos elementos que lhes dariam causa. Em contrapartida, para esses teóricos, os jogadores de futebol jamais poderiam invocar a figura do acidente de trabalho caso viessem a sofrer alguma lesão em campo ou durante um treino. As moléstias profissionais do atleta não estariam sistematizadas em nenhuma regulamentação e nunca poderiam ser invocadas para efeito de uma indenização.

A greve era outro elemento de distinção entre os jogadores e os trabalhadores em geral. Na década de 1950, as leis relativamente democráticas toleravam e regulavam o direito de greve, invocado quando da paralisação das atividades de uma empresa ou categoria profissional. A exceção prevista era em tempos de guerra, quando a greve poderia ser considerada uma sabotagem, passível de sérias sanções penais. O atleta não estaria sujeito à regulamentação do direito de greve. Jamais se poderia dizer que a recusa de um desportista em participar de uma disputa ou competição pudesse ser considerada greve ou abandono do local de trabalho. Da mesma forma, as leis penais nunca pediriam ser invocadas contra o jogador que, em tempos de paz ou guerra, se recusasse à prática do esporte.

O terceiro, e mais importante, ponto de diferenciação dos atletas estaria na forma de como eram contratados. A forma como os clubes procuravam contratar um jogador era absolutamente peculiar, quando comparada com o processo de contratação pelas empresas. Os clubes procurariam não um indivíduo, não qualquer indivíduo, mas um determinado sujeito, dotado de características especiais, de requisitos indispensáveis, como talento, habilidade, boa saúde, aptidão, além da fama e do interesse do público torcedor pela contratação. A contratação do atleta era feita por tempo determinado, fugindo da regra geral da CLT, tendo delimitado o termo final, ad quem. O próprio clube contratante em nada se assemelharia com a empresa empregadora. Aquele, uma entidade civil sem fins lucrativos, cujo objetivo, pelo menos teórico, era a diversão e o lazer de seus sócios. Já as empresas, movidas pelo lucro, não poderia ter outro objetivo ao contratar senão sua expansão e crescimento.

As características específicas dos contratos dos atletas também foram utilizadas para diferenciar os profissionais do esporte do conjunto dos trabalhadores. Os obreiros regidos pela CLT não enfrentavam qualquer limitação etária para exercer suas atividades, e seu contrato de trabalho nascia no momento do início de sua atividade. Já a contratação dos futebolistas estava proibida após os 35 anos, salvo mediante a apresentação de um laudo assinado por uma junta médica, especializada em Medicina Desportiva129. Quanto à vigência, o contato do atleta, mesmo celebrado de forma absolutamente regular, somente se aperfeiçoava após os registros obrigatórios130.

Essa doutrina também afastava as tentativas de buscar uma identificação analógica do contrato dos atletas com outras formas contratuais, que poderiam dele se aproximar, como o Contrato de Artistas. Para os doutrinadores da época tinham, por força de lei, natureza diversa, e não poderiam ser equiparados.

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Estabelecendo a Consolidação das Leis do Trabalho que os artistas seriam considerados empregados, e, como tais, submetidos à Justiça do Trabalho, julgaram os autores existir identidade entre o contrato feito pelo atleta com o clube e o Contrato de Artistas.

Tal aproximação não encontrou ressonância nos meios jurídicos.

Se por um lado se exigem na contratação dos artistas as mesmas características exigidas dos atletas, como habilidade, fama, interesse despertado no público e demais características ligadas à popularidade, se ambos — artistas e atleta — desenvolvem atividades de fins recreativos, sem visar à produção concreta, por outro lado cumpre advertir que os primeiros foram protegidos pelas normas da Consolidação, não havendo para os segundos a menor proteção legal naquele diploma legislativo131.

Assim, para uma ampla corrente de doutrinadores das décadas de 1940 e 1950, a natureza jurídica das relações de subordinação que se estabeleciam entre o esportista profissional e a entidade de que fazia parte pertenceria ao âmbito do Direito Civil. Era um pacto sui generis, do gênero Contrato de Esporte, dentro da espécie Contrato de Locação de Serviços. Era um acordo oneroso, sinalagmático perfeito, comutativo, realizado intuitu personae, individualizado pelas suas particularidades. Essa foi a concepção que prevaleceu entre 1933 — profissionalização do atleta — e 1976 — quando a lei o reconheceu como empregado.

3.1.2. Natureza desportiva

Uma segunda tese sobre a natureza jurídica dos contratos assinados entre os jogadores e os clubes defende a existência de um ramo específico do Direito — o Desportivo —, com especificidades e peculiaridades próprias que o distingue dos demais. Segundo essa visão, a “legislação brasileira dos desportos anima o pressuposto da formação de um direito próprio...

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