Contornos jurídicos e matizes econômicas dos contratos de integração vertical agroindustriais no Brasil

AutorNunziata Stefania Valenza Paiva
Páginas84-106

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1. Introdução

Não é recente no mundo do agronegó-cio o aparecimento de modelos contratuais que colocam em relação de cooperação setores diversos da produção, formando verdadeiras e próprias cadeias contratuais agroindustriais. Trata-se dos contratos agroindustriais ou, ainda, contratos de integração vertical agroindustriais, que têm como sujeitos o produtor rural, a indústria e/ou o setor de distribuição e comercialização. Os setores avícola, suinícola e da fruticultura demonstram performance excelente muitas vezes associada a essas formas de contratação. Recentemente outro setor em que cresce vigorosamente a contratação vertical agroindustrial é o da produção de matéria-prima para as indústrias processadoras de biodiesel. Nesse campo, aliás, as iniciativas normativas prevendo a implantação do selo social e da redução de alíquotas da contribuição para o PIS/ PASEP e da COFINS incidentes sobre a comercialização de biodiesel parecem apontar o caminho sugerido neste trabalho - ou seja, a regulamentação da contratação vertical pelo Estado e a escolha de sanções premiais como forma de incentivo ao com-portamento positivo dos sujeitos em cumprimento ao comando legal.1

O estudo dos contratos de integração pela Economia e pela Sociologia já ocorre há longo tempo no Brasil, com vasta literatura publicada. Contudo, observa-se que estudos sob o ponto de vista jurídico são escassos no país, o que conduz os apli-cadores do Direito a certa perplexidade. Primeiramente, os advogados, quando são chamados a patrocinar a causa do produtor rural ou da agroindústria partes de litígio oriundo da interpretação ou aplicação do contrato agroindustrial, têm dificuldade em construir a argumentação, pela simples falta de suporte teórico do que seja essa modalidade contratual que cada vez mais se impõe na prática negocial. Também os juízes, em regra, não têm familiaridade

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com o funcionamento da integração por via dos contratos; e, na falta de lei específica que regule as linhas-mestras desse tipo contratual, surge a dificuldade em compreender os interesses em jogo e distingui-los dos demais modelos contratuais existentes, com vistas à aplicação do regime jurídico adequado. De outra sorte, o legislador também não tem sólidas bases doutrinárias para compreender o fenômeno contratual novo e, na tentativa de criar uma lei para regulamentar os contratos de integração, por meio do Projeto de Lei 4.378/1998, teve por resposta da sociedade o embate das agroindústrias, que rejeitaram o projeto de lei, por entendê-lo lesivo à manutenção da própria atividade de integração.

Neste trabalho pretende-se descrever, sob o ponto de vista jurídico, a dinâmica dos contratos de integração vertical agroin-dustriais, ressaltando-se sua importância na produção e no mercado nacionais. Ado-tando-se uma postura interdisciplinar e ressaltando-se a riqueza do diálogo travado entre a Economia e o Direito, pretende-se discutir como a análise econômica pode contribuir para a compreensão do funcionamento dos contratos de integração, que por ora não têm qualquer tipo legal que preestabeleça seus elementos essenciais, o que parece ser bastante útil ao trabalho dos aplicadores do Direito que lidam de alguma forma os contratos de integração vertical agroindustriais.

2. O fenômeno da integração: os contratos, a integração e a agroindústria

O contrato é tão velho quanto a sociedade humana e tão necessário como a própria lei: confunde-se com as origens do Direito. Essa projeção da vontade e do consenso surgiu quando a Humanidade deixou atrás de si a barbárie, quando tudo era resolvido com base na força e no sobrepujo do mais fraco. Com a ampliação das comunidades humanas e o crescimento das relações entre elas, o contrato mostrou-se instrumento decisivo na circulação da ri-queza. E hoje parece praticamente impossível estar no meio social sem praticar, a todo dia, a toda hora, uma série de contratos. Mas desde a época em que imperavam os regimes liberais até os dias de hoje o contrato sofreu profunda evolução; evidenciou-se sua função social, fruto do despertar do legislador para a consciência dos direitos econômicos e sociais.

O dirigismo contratual, a intervenção do Estado através do Legislativo e do Judiciário no primado da liberdade de contratar, que tomou conta do campo antes deixado exclusivamente ao arbítrio das partes, fez surgir a tormentosa questão: seria o declínio do contrato? Uma resposta afirmativa a tal questão somente poderia ser admitida no sentido de que o pretendido declínio significaria que para as figuras contratuais clássicas há uma limitação na liberdade de contratar, destinada a garantir o equilíbrio econômico das partes contratantes. Não se pode pretender, segundo Villela,2 o estancamento do contrato como veículo de necessidades sociais e econômicas, nem mesmo a retração das formas tradicionais do contrato, mesmo porque o que se registra nos últimos tempos é um crescente impulso do contrato sob a forma de tipos sociais criados para atender as novas necessidades das pessoas no mundo em constante evolução.

Sinal expressivo desse impulso contratual é a constatação dos chamados "contratos agroindustriais", dentre os quais destacam-se os contratos de integração vertical agroindustriais, surgidos na nova economia agrária e industrial do mundo moderno, em que se realçam os movimentos de cooperação entre setores econômicos diversos. Nos contratos de integração vertical agroindustriais a importância só-cio-econômica a eles atribuída supera o plano privado das relações entre particulares e alcança o plano público, quando se reconhece aos referidos contratos o papel

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de instrumento organizador do mercado agrícola, notada primeiramente na Europa. Coincidentes às transformações do mercado de produtos agrícolas ocorridas a partir da década de 1960, os vínculos contratuais entre produtores agrícolas e empresas industriais ou comerciais se difundiram como instrumentos destinados a organizar as relações de troca que têm como objeto os produtos agrícolas, constituindo uma alternativa frente ao mercado livre.

A carência de um mercado organizado ou, melhor, as imperfeições do livre mercado criam as condições que favorecem a estipulação de contratos de integração vertical. E é justamente com o intuito de suprir essa carência ou remediar as imperfeições da indústria e do comércio, como setores mais fortes da Economia, que se tende a racionalizar ou regulamentar as relações com o setor primário através dos contratos de integração vertical.

Pode-se dizer que os contratos de integração vertical agroindustriais, nesse âmbito, realizam o importante papel de instrumento de modernização da agricultura, através da cooperação entre os setores produtivo, transformador e comercia-lizador. Pode-se até mesmo afirmar que o papel desses contratos seria o de fortalecer a atividade empresarial através da minimi-zação dos riscos existentes, sobretudo as oscilações de mercado. Ressalta-se, ainda, uma importante função que pode ser atribuída aos contratos de integração vertical, que é de serem veículos de inclusão social, na medida em que pequenos produtores, sobretudo em regime de produção familiar, podem ingressar num mercado de alta concorrência e ter algumas garantias ligadas ao escoamento da produção e preço mínimo, além do incremento tecnológico viabilizado pela assistência técnica dada pela agroindústria. Nesse sentido, um exemplo a ser citado no Brasil é o Programa Nacional de Produção e Uso de Bio-diesel/PNPB, direcionado de forma clara a integrar os produtores familiares à oferta de biocombustíveis, sobretudo com uso de matérias-primas pouco empregadas - tais como mamona, dendê e pinhão manso -, e, assim, contribuir para o fortalecimento de sua capacidade de geração de renda. Segundo o modelo brasileiro em implantação, as empresas produtoras do combustível irão se apoiar na estrutura sindical para negociar os contratos de integração e organizar a oferta. O controle da qualidade do produto será garantido por um aparato próprio de assistência técnica e garantia de preços aos produtores.

Assim, diante das implicações práticas na vida social desempenhadas pela contratação vertical agroindustrial, faz-se necessária a construção de uma teoria unitária dos contratos de integração, pontuando e analisando os diversos aspectos jurídicos relativos a essa modalidade contratual. Preliminarmente, faz-se necessária uma definição geral do fenômeno da integração, que deverá referir-se ao fenômeno de origem econômica, enquanto a definição jurídica só é possível de se obter a partir da análise da disciplina legal de cada país.

O fenômeno da integração indica certo tipo de interação econômica entre duas partes que desenvolvem uma das operações do ciclo produtivo referentes à produção, transformação e venda de determinado produto. Há um centro de decisões que se concentra na parte que desenvolve ao menos duas das operações descritas anteriormente, e que normalmente seriam desenvolvidas por diferentes núcleos operativos. São possíveis formas de integração em diferentes níveis; como exemplo, no setor distributivo para ligar o produtor ao varejista. Distinguem-se basicamente duas formas de integração, quais sejam: a horizontal, pela qual as partes pertencem à mesma categoria econômica; a vertical, pela qual as partes pertencem a categorias diferentes.

Mas deve-se observar que, na realidade, freqüentemente não se realiza uma verdadeira e própria integração vertical, mas simplesmente o fenômeno que os economistas chamam de "quase-integração",

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e que corresponde ao...

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