Contornos atuais do contrato de 'factoring

AutorLívio Goellner Goron
Páginas153-173

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1. Introdução

O grande desafio do Direito neste início de século XXI talvez seja lidar com a velocidade com que se processam as mudanças económicas e sociais e com a consequente necessidade de regulamentar o que nem mesmo foi sedimentado pela prática social. As sociedades ocidentais, ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais dinâmicas e globalizadas - ou talvez por essa razão -, hoje assistem, perplexas, à perda de referências culturais, políticas, económicas e jurídicas que as acompanharam por séculos.

Em que pese ao alerta do historiador Eric Hobsbawn quanto à análise de fatos contemporâneos, de quem o narrador é sempre mais um partícipe do que um estudioso,1 atualmente é possível afirmar, sem maiores receios, que as sociedades ocidentais estão atravessando um amplo e generalizado processo histórico de mudança de paradigmas,2 fenómeno que se convencio-nou chamar, com algum arbítrio, de contem-poraneidade ou pós-modernidade.

Não existe um ponto de vista único sobre o fenómeno da pós-modernidade. Podem-se ver na pós-modernidade a ideia de pluralismo, a diversidade de valores, a fuga das categorias, o retorno ao irraciona-lismo e aos sentimentos, tal como expressa a visão de Erik Jayme.3 Ou se pode, ainda sem contradição, visualizar nela a exaltação do individualismo, a retirada de cena do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State),4 a desregulamentação e o fim do

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Estado Intervencionista, como observa Carlos Alberto Ghersi.5

Ambos os pontos de vista não são ex-cludentes, pois espelham as várias facetas de um processo que atinge todas as instâncias sociais, inclusive o Direito, ameaçando carregar no seu avanço os pilares que sustentam a cultura europeia6 desde o início da História moderna - a saber, a Ética Cristã, o Humanismo, o Iluminismo e o Ra-cionalismo.

Das necessidades sociais mais importantes e mais fortemente afetadas pelo fenómeno da pós-modernidade se encontra sem dúvida a obtenção de crédito e financiamento. Não carece sublinhar que a sociedade moderna é dependente da utilização do crédito nas mais diversas formas, seja como financiamento ao consumo, produção ou exportação. Não é por acaso que as grandes crises económicas da era moderna, as que atingiram as economias ocidentais de forma mais profunda - a exemplo da Grande Depressão -, estiveram intimamente relacionadas com a expansão desmedida do crédito e a consequente quebra do sistema de financiamento, pelo descompasso entre produção e demanda.7

Atualmente a concessão de crédito tornou-se o espaço típico das relações contratuais de massa, dos contratos de adesão, das estipulações abusivas e da fuga à regulamentação legal. Um espaço, de certo modo, paradigmático da contemporanei-dade.

Entre as formas de financiamento da atividade económica que conquistaram maior interesse e prosperaram sob o signo das relações contratuais "pós-modernas", complexas e de massa está o factoring. Trata-se de um instituto complexo que nasceu e se desenvolveu à sombra do direito positivo, como acontece com boa parte das práticas mercantis, mas que alcançou grande difusão por suas reais ou aparentes vantagens como técnica de financiamento de pequenas e médias empresas.

Segundo informações coletados pela Associação Nacional de Factoring (AN-FAC), em 1999 existiam mais de 18 milhões e 700 mil Reais somente nas carteiras de créditos da empresas de factoring filiadas à referida entidade8 - o que é muito relevante considerando-se o relativo atraso de sua introdução no Brasil.

O factoring é um dos contratos que mais se aproximam de um paradigma pós-moderno de contratação - fator que talvez explique seu considerável êxito. Com efeito, o factoring apresenta-se como um contrato maleável, complexo, multilateral, que obedece a várias fontes normativas diferentes. Também é um contrato que se presta a abusos, por se situar numa fronteira indefinida entre o direito comercial e o direito financeiro.

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Sem esquecer a notável importância económica que ofactoring assumiu para o impulso dos pequenos empreendedores, tais considerações justificam buscar um exame mais acurado dessa figura contratual, abordando os aspectos polémicos de seu emprego, característicos dos desafios que o Direito hoje encontra para normatizar as relações sociais.

2. Delineamento do contrato de "factoring"
2. 1 Breve histórico

Ao se colocar em perspectiva histórica um instituto qualquer do direito civil ou comercial existe a tendência de se buscar sua origem na Antiguidade remota, preferentemente no Direito Romano clássico. Imbuídos dessa visão menos prudente, alguns autores sugerem que ofactoring teria nascido na Roma Antiga, com a prática dos comerciantes de entregarem mercadorias para venda em consignação. Outros vão ainda mais longe, e recuam até o Direito Babilónico para localizar a origem do instituto.

Na realidade, as raízes do factoring como hoje é praticado são bem mais recentes, uma vez que remontam ao processo de colonização dos EUA pela Inglaterra.

Durante os séculos XVII e XVIII comerciantes ingleses exportavam grandes volumes de mercadorias para os EUA, destacando-se entre elas os produtos têxteis. Para efetuarem suas vendas em solo americano constituíam agentes naquele país encarregados de receber as mercadorias, vender o produto e realizar a cobrança.9 Estes agentes possuíam amplo conhecimento do mercado local, dispondo de melhores condições de avaliar os riscos da venda.10 Verificou-se nestes primórdios, portanto, uma certa confusão com outros contratos mercantis, como a comissão e a representação comercial.

Com o passar do tempo os agentes constituídos em território americano deixaram de se ocupar do recebimento da mercadoria e da sua venda e passaram a se especializar na atividade de cobrança. Em certos casos os agentes chegavam a assumir para si o risco da inadimplência, adiantando ao fornecedor o preço da venda antes que ele fosse pago pelo comprador. Aqui, precisamente, residiu a origem do contrato de factoring.

Após a Independência dos EUA, rompidos os laços com a Inglaterra, os agentes de factoring passaram a prestar seus serviços aos fornecedores americanos.11 Inicialmente a operação ficou restrita à venda de lã e tecidos - até hoje o principal mercado áofactoring nos EUA -, mas em seguida à Grande Crise de 1929, em face da desespe-radora necessidade de crédito dos agentes económicos, o factoring espraiou-se para outros setores da Economia.12 Uma das razões para o particular êxito áofactoring nos EUA é que o Direito Norte-Americano não conhece o desconto bancário de títulos, forma mais típica de financiamento das empresas comerciais.13

Entrementes, na Europa o factoring havia desaparecido desde o século XIX, sendo reintroduzido na Inglaterra no começo dos anos 60 por via da influência norte-americana. Daí o instituto se espalhou para outros países europeus, e finalmente para o Brasil.14

Em nosso país o factoring foi objeto de um pioneiro artigo de Fábio Konder Comparato,15 publicado em 1972, no qual o autor propunha a expressão "faturização"

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para designar o novo instituto no Direito Brasileiro.16 Entretanto, foi somente na década de 80 que as operações de factoring de fato começaram a ser praticadas no Brasil. Refletindo a crescente difusão da sua prática, foi criada em 1982 a ANFAC -Associação Nacional de Factoring.

Em 28.5.1988 a UNIDROIT, entidade dedicada à uniformização do direito privado, realizou um congresso sobre factoring na cidade de Ottawa, no Canadá, do qual resultou a convenção UNIDROIT de Ottawa, que foi assinada pelo Brasil.17

A Convenção de Ottawa definiu o contrato de factoring como sendo um contrato complexo, constituído de diversos serviços prestados cumulativamente, sendo que apenas o contrato formado pela junção de no mínimo dois desses serviços, prestados em base continua, é que caracteriza efetivamen-te o factoring.18

2. 2 Elementos do contrato e figuras contratuais afins

A complexidade estrutural do contrato defactoring não autoriza simplificações que o reduzam a institutos jurídicos já conhecidos. O factoring não é pura e simplesmente uma operação financeira. Por outro lado, ele também não é apenas um contrato de compra e venda mercantil, ou um simples contrato de prestação de serviços de assessoria em gestão e administração, embora guarde elementos de todos as operações acima citadas. O factoring é um complexo negócio de aquisição futura de bens e serviços, que se concretiza e se consuma com a prestação de serviços.

O factoring pode ser visualizado como um contrato de venda de ativos ou de fatu-ramento, tendo no seu núcleo, por assim dizer, a ideia de cessão de créditos.19 O propósito subjacente ao factoring é que uma pequena ou média empresa que necessite de financiamento para seu capital de giro, muitas vezes não dispondo de interesse ou condições de contrair um empréstimo bancário - até mesmo por não conseguir a aprovação de seu cadastro junto às instituições financeiras -, possa alienar o crédito da venda de suas mercadorias ou serviços a uma empresa de factoring, antecipando uma receita e garantindo-se contra os riscos da cobrança.

Um exame preliminar da relação contratual de factoring revela ao menos três características singulares que emprestam a este contrato uma feição tipicamente pós-moderna, justificando o interesse no seu tratamento sistemático:

(a) O factoring consiste em uma relação contratual complexa e dinâmica, assentada em um contrato-base, mas que se prolonga no tempo.

(b) O factoring é um contrato multi-lateral, em que originalmente comparecem...

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