Continuidade e Mudança no Emprego Doméstico no Brasil, 1996-2013

AutorCarlos Henrique Horn e Cristina Pereira Vieceli
Páginas77-95

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Introdução

No início do século XXI, pelo menos até os primeiros anos da segunda década, ocorreram importantes mudanças na situação social e do mercado de trabalho brasileiro, de que se destacam o aumento na geração de postos de trabalho formais, o crescimento da parcela do rendimento do trabalho no total da renda e a diminuição da desigualdade social (POCHMANN, 2012). Estas transformações foram concomitantes ao crescimento geral da escolaridade, à adoção de políticas irmes de transferência de renda a famílias pobres (Bolsa Família) e de políticas de cotas para admissão no ensino superior e no serviço público, e à valorização do salário mínimo, as quais explicam, em parte, aqueles resultados. Neste contexto, os principais impactos se izeram sentir nos empregos que coniguram a base da pirâmide social brasileira, onde também se encontra o trabalho doméstico remunerado.

Em face das particularidades do trabalho doméstico, cuja "existência se relaciona mais à combinação da concentração da renda e riqueza com a existência de parcela signiicativa de força de trabalho sobrante às atividades desenvolvidas nos setores públicos e privados" (POCHMANN, 2012, p. 47), as transformações havidas no mercado de trabalho brasileiro acabaram por se expressar de modo peculiar em mudanças no peril do emprego doméstico. Segundo Brites e Picanço, teria havido uma dupla transformação na categoria doméstica brasileira: de um lado, jovens mais escolarizadas das classes populares, com expectativas de ampliar o consumo, procuraram migrar para ocupações com maior prestígio social no comércio e nos serviços do ramo de beleza; de outro lado, o emprego doméstico permaneceu como uma alternativa de trabalho para mulheres jovens e adultas com baixa escolaridade e pouco domínio de "ferramentas e habilidades sociais valorizadas, tais como ‘comportamento social adequado’, falar corretamente e se vestir adequadamente para disputar as melhores posições no mercado de trabalho" (BRITES; PICANÇO, 2014, p. 138).

Tendo como pano de fundo as transformações do mercado de trabalho brasileiro, o objetivo deste capítulo é identiicar os principais traços de continuidade e mudança no trabalho doméstico remunerado no Brasil metropolitano, ixando-se como período de análise os anos entre 1996 e 2013.1 Assim, comparamos a situação do emprego doméstico em 2013

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com a da segunda metade da década de 1990, deixando, todavia, de examinar sua trajetória ao longo dos anos intermediários.2 De modo análogo ao capítulo precedente, consideramos, na primeira seção, as características pessoais das trabalhadoras domésticas e, na segunda, as condições da relação de emprego ou posto de trabalho doméstico.

Mudanças no peril das empregadas domésticas

As mudanças no peril das empregadas domésticas de que nos ocupamos neste capítulo devem ser observadas em relação ao pano de fundo da continuidade do crescimento da participação feminina na estrutura ocupacional. Este processo vem alterando a isionomia do mercado de trabalho brasileiro de modo gradativo por já longo período. Assim, entre 1996 e 2011, conforme se observa na Tabela 1, houve aumento na participação das mulheres em todos os grandes setores de atividade econômica, sem exceção quanto à região. As variações mais expressivas ocorreram no setor do comércio, secundado pelo setor de serviços, sendo que em ambos as mulheres representavam praticamente a metade dos trabalhadores ao inal do período. E mesmo nos serviços domésticos, onde sua predominância virtualmente absoluta é um dado estrutural anterior, veriicou-se crescimento marginal na participação feminina em todas as regiões.

Tabela 1: Proporção de mulheres ocupadas por setores de atividade, segundo Regiões Metropolitanas e Distrito Federal, 1996/2011 (%)

Fonte: Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). Elaborada pelos autores com base em dados tabulados pelo Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e instituições regionais.

Notas: 1. A série de dados de Salvador inicia em 1997 e a do Recife em 1998; a série do Distrito Federal termina em 2012. 2. Quando a tabela não fornece a informação, a amostra não comporta a desagregação para a categoria.

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A maior intensidade do aumento da presença feminina nos setores de comércio e serviços impactou a distribuição da ocupação das mulheres segundo os setores de atividade. A Tabela 2 mostra, como esperado, que o setor de serviços se tornou ainda mais importante para a inserção feminina no mercado de trabalho, tendo havido crescimento na participação também no comércio. Em contrapartida, outros setores perderam importância, sendo que o destaque cabe precisamente aos serviços domésticos.

Tabela 2: Distribuição das mulheres na ocupação por setores de atividade, segundo Regiões Metropolitanas e Distrito Federal, 1996/2011 (%)

Fonte: Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). Elaborada pelos autores com base em dados tabulados pelo Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e instituições regionais.

Notas: 1. A série de dados de Salvador inicia em 1997 e a do Recife em 1998; a série do Distrito Federal termina em 2012. 2. Quando a tabela não fornece a informação, a amostra não comporta a desagregação para a categoria.

Esta mudança no peril ocupacional das mulheres fez com que o comércio viesse a preencher a segunda posição como empregador de força de trabalho feminina, desbancando os serviços domésticos. Esses serviços, que representavam em torno de 20% da ocupação feminina ao inal do século XX, diminuíram seu peso conforme taxas que variaram entre 3,6 (São Paulo) e 9,3 pontos de percentagem (Distrito Federal). Dada a preponderância das mulheres no emprego doméstico, tais reduções evidenciam uma considerável perda de sua importância na formação da renda do trabalho das famílias brasileiras no período.

A migração das mulheres - dos serviços domésticos para os setores de comércio e serviços - ocorreu por meio da recusa das trabalhadoras mais jovens a ingressar no mercado de trabalho naquele segmento que provavelmente empregou muitas de suas antepassadas. O aumento da escolaridade e a amplitude de novos serviços teriam permitido que mulheres mais jovens optassem por atividades laborais diferentes do emprego doméstico. Com efeito, conforme se evidencia na Tabela 3, uma das transformações mais marcantes no período analisado foi o rápido envelhecimento do peril das empregadas domésticas. Ainda que esta mudança tenha afetado toda a estrutura ocupacional brasileira, o aumento nos percentuais de ocupadas domésticas nas faixas de maior idade foi bastante mais pronunciado. Até 2001, as domésticas se concentravam em faixas etárias mais jovens vis-à-vis o total das mulheres ocupadas, ocorrendo, no entanto, uma completa inversão deste padrão a partir de 2006, quando rapidamente se processou uma forte concentração das domésticas na faixa etária acima de quarenta anos e seu virtual desaparecimento na faixa de menos de 24 anos.

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Quanto aos aspectos regionais do processo de envelhecimento do emprego doméstico, cabe destacar que a maior diminuição do percentual de domésticas jovens ocorreu em Belo Horizonte, onde a proporção de empregadas com 24 anos ou menos se reduziu de 36%, em 1996, para uma situação sem evidência estatisticamente relevante em 2013. Em Porto Alegre, essa variação foi a menos expressiva dentre as regiões em função de já representar o menor montante relativo de domésticas jovens no ponto de partida, deixando de haver evidência estatística de domésticas jovens no ano de 2013.

Tabela 3: Distribuição do total de ocupadas e das empregadas domésticas por faixa etária, segundo Regiões Metropolitanas e Distrito Federal, 1996/2013 (%)

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Fonte: Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). Elaborada pelos autores com base em dados tabulados pelo Convênio DIEESE, SEADE, MTE/FAT e instituições regionais.

Notas: 1. A série de dados de Salvador inicia em 1997 e a de Recife em 1998; a série do Distrito Federal termina em 2012. 2. Quando a tabela não fornece a informação, a amostra não comporta a desagregação para a categoria.

Em conjunto com o fenômeno do envelhecimento, destaca-se a mudança no peril das domésticas quanto à escolaridade, com o aumento da proporção de empregadas com maior nível de educação formal. Conforme se evidencia na Tabela 4, em 1996, a imensa maioria das empregadas domésticas era analfabeta ou possuía Ensino Fundamental Incompleto: entre 79,5% (Distrito Federal) e 88,6% (Belo Horizonte) dessas trabalhadoras se encontravam nesta faixa de escolaridade. Em relação ao total das ocupadas, este percentual, ainda que elevado, era bem inferior ao das domésticas, icando entre 36,6% e 46,2%. O percentual de trabalhadoras domésticas no grupo intermediário do Ensino Fundamental Completo e Médio Incompleto também variava entre as regiões, oscilando entre um mínimo de 9,4% (Belo Horizonte) e um máximo de 16,1% (Distrito Federal), enquanto que, para o total das ocupadas, icava entre 13,7% e 20,2%. Nos grupos de Ensino Médio Completo ou Superior Incompleto e de Ensino Superior Completo, o número de domésticas era ínimo, registrando-se evidência estatisticamente relevante somente para o primeiro grupo no Recife e em São Paulo.

Nos anos seguintes, observou-se um expressivo aumento na escolarização das...

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