Entre a forma e o conteúdo na desconstituição dos negócios jurídicos simulados

AutorPaulo de Barros Carvalho
CargoProfessor Emérito e Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP e da Universidade de São Paulo - USP. Membro da Academia Brasileira de Filosofia
Páginas7-24

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1. Introdução

Antes de ingressar, propriamente, no assunto posto aos meus cuidados, entendo serem oportunas algumas palavras sobre o modo e por quais caminhos pretendo aproximar-me do objeto, para que seja possível articular suas complexidades, refletir sobre elas e poder, ao fim, construir conclusões consistentes capazes de acalmar o espírito instigado pela dúvida.

De fato, todo trabalho com aspirações mais sérias há de expor previamente seu método, assim entendido o conjunto de técnicas utilizadas pelo analista para demarcar o objeto, colocando-o como foco temático e, de seguida, penetrar no seu conteúdo. Parece apropriado efetuar breves considerações sobre o itinerário do pensamento, no sentido de abrir caminho para que o leitor possa percorrê-lo com desenvoltura, consciente do plano traçado pelo autor. Tal informação, que é de grande utilidade para ensejar a iterativa conferência do rigor ex-positivo, volta-se, fundamentalmente, para esclarecer o trajeto que vai ser trilhado, fa-

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cilitando sobremaneira a fundamentação das proposições apresentadas.

Tomarei o direito positivo como obje-to cultural que se apresenta como camada de linguagem em função prescritiva, proje-tando-se sobre o domínio das condutas in-tersubjetivas, para regulá-las com seus operadores deônticos (permitido, obrigatório e proibido). Tais reflexões pedem atenção para o modo pelo qual se opera a construção do sentido, interpretação do direito posto.

Para apropriada compreensão do tema, releva tecer alguns comentários sobre a função da linguagem na constituição da realidade jurídica. É importante também dedicar algumas linhas à dicotomia forma e conteúdo, que tem ocupado importante espaço nas discussões sobre a desconsideração de negócios jurídicos "simulados". Além disso, essa ordem de considerações nos levará à conclusão de que somente o fato juridicamente qualificado pode ser tomado para fins de determinar a formação do liame tributário, sendo descabidas análises de ordem meramente econômica.

Com suporte em tais premissas, e tendo em vista o princípio da autonomia da vontade e da livre iniciativa, aliados àqueles da estrita legalidade e da tipicidade tributária, passo à análise da possibilidade jurídica de o contribuinte praticar fatos que lhe acarretem menor ônus tributário. Somente nos casos de simulação, com a prática de atos fraudulentos e dolosos, ter-se-á a possibilidade de o Fisco desconsiderar os negócios praticados, fazendo recair a tributação sobre a forma negocial oculta (negócio dissimulado). Examinarei, desse modo, a figura da simulação, demarcando--lhe os traços característicos e discorrendo sobre seu uso na seara tributária.

2. Conhecimento e linguagem

Decompondo-se o fenômeno do conhecimento, encontramos o dado da linguagem, sem o qual ele não se fixa nem se transmite. Já existe um quantum de conhecimento na percepção, mas ele se realiza mesmo, na plenitude, no plano proposicio-nal e, portanto, com a intervenção da linguagem. "Conhecer", ainda que experimente mais de uma acepção, significa "saber proposições sobre". Conheço determinado objeto se posso expedir enunciados sobre ele, de tal arte que o conhecimento, nesse caso, se manifesta pela linguagem, mediante proposições descritivas ou indicativas.

Por outro lado, a cada momento confirma-se a natureza da linguagem como constitutiva de nossa realidade. Já afirmava Wittgenstein, na proposição 5.6 do Tractatus Logico-Philosophicus, que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo", significando: meu mundo vai até aonde for minha linguagem. A experiência o comprova: olhando para uma folha de laranjeira, um botânico seria capaz de escrever laudas, relatando a "realidade" que vê, ao passo que o leigo ficaria limitado a poucas linhas. Dirigindo o olhar para uma radiografia de pulmão, o médico poderia sacar múltiplas e importantes informações, enquanto o advogado, tanto no primeiro caso, como neste último, ver-se--ia compelido a oferecer registros ligeiros e superficiais. Por seu turno, examinando um fragmento do Texto Constitucional brasileiro, um engenheiro não lograria mais do que construir mensagem adstrita à fórmula literal utilizada pelo legislador, enquanto o bacharel em Direito estaria em condições para desenvolver análise ampla, contextual, trazendo à tona o conteúdo das normas jurídicas, identificando valores e apontando princípios. Por que alguns têm acesso a esses campos e outros não? Por que alguns ingressam em certos setores do mundo, ao mesmo tempo em que outros se acham absolutamente impedidos de fazê--lo? A resposta é uma só: a realidade do botânico, com relação à Botânica, é bem mais abrangente do que a de outros profissionais, o mesmo ocorrendo com a realidade do médico, do engenheiro e do bacharel

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em Direito. O fator determinante para que essas realidades se expandissem, dilatando o domínio dos respectivos conhecimentos, é a linguagem ou a morada do ser, como proclamou Heidegger.

O laço que prende um termo a seu significado costuma apresentar-se aos nossos olhos como algo dado a nós, um vínculo natural conhecido como elemento da realidade. Todavia, essa relação entre a palavra e a coisa é artificial. Quando aprendemos o nome de um objeto, não aprendemos algo acerca da coisa, senão sobre os costumes linguísticos de certo grupo ou povo que fala o idioma no qual esse nome corresponde a um específico objeto. Não obstante seja corriqueiro afirmar-se que uma coisa tem nome, seria mais rigoroso dizer que nós é que temos um nome para essa coisa. Disso decorre uma conclusão necessária: não existem nomes verdadeiros ou falsos. Há, tão somente, nomes aceitos ou não aceitos. A possibilidade mesma de inventar nomes, por sua vez, também leva um nome: liberdade de estipulação. Nesse sentido, asseveram Guibourg, Ghigliani e Guarinoni,1 cheios de convicção:

"Estas consideraciones nos llevan a una nueva conclusión, más profunda que la anterior: al inventar nombres (o al aceptar los ya inventados) trazamos límites en la realidad, como se la cortáramos idealmente en trozos; y al asignar cada nombre constituimos (es decir, identificamos, individualizamos, delimitamos) el trozo que, según hemos decidido, corresponderá a ese nombre. (...) Por esto la realidad se nos presenta ya cortada en trozos, como una pizza dividida en porciones, y no se nos ocurre que nosotros podríamos haber cortado las porciones de otro tamaño o con otra forma".

Decididamente, é também a linguagem que nos dá os fatos do mundo físico e do social. Feita a observação, verifica-se que o homem vai criando novos nomes e novos fatos, na conformidade de seus interesses e de suas necessidades. Para nós, basta uma só palavra para designar "neve". Para os esquimós, entretanto, envolvidos por circunstâncias bem diversas, impõe-se a distinção entre as várias modalidades de "neve" e a cada uma corresponderá um termo. Não se pode precisar o motivo exato, mas os povos de cultura portuguesa houveram por bem, em determinado momento de sua evolução histórica, especificar a palavra "saudade", diferentemente de outras culturas que a mantêm incluída em conceitos mais gerais, como "nostalgia", "tristeza" etc. Em português, como em castelhano, temos "relógio" ("reloj"); já em inglês discriminou-se "clock" para o relógio de parede e "watch" para o de bolso ou de pulso. E, em francês, existem três vocábulos distintos: "horloge" (de torre ou de parede), "pendule" (de mesa ou de pé) e "montre" (de bolso ou de pulso).

O esclarecimento das razões determinantes dessas especificações é, muitas vezes, encontrado na Gramática Histórica, disciplina incumbida de estudar as dinâmicas que presidem a evolução do idioma. A observação revela que tanto as palavras re-cém-criadas como as novas acepções atribuídas àqueles termos já conhecidos, incorporam-se ao patrimônio linguístico por força de necessidades sociais. A Física tinha no átomo a unidade irredutível da matéria. Com o progresso do interesse científico e o avanço da pesquisa que culminou com a possibilidade de decomposição daquela partícula, tornou-se imperiosa a expansão da linguagem para constituir a nova realidade: eis o "próton", o "nêutron", o "elé-tron".

Breve comparação entre dicionários de um mesmo idioma, editados em momentos históricos diferentes, aponta para significativo crescimento do número de palavras, assim na chamada "linguagem natural", como nos discursos das várias ciências. É a linguagem constituindo realidades novas e alargando as fronteiras do nosso conhecimento.

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2. 1 A constituição da "realidade jurídica" por meio da linguagem

A linguagem natural está para a realidade em que vivemos assim como a linguagem do direito está para a nossa realidade jurídica. Dito de outra maneira, da mesma forma que a linguagem natural constitui o mundo circundante, por nós chamada de realidade, a linguagem do direito cria o domínio do jurídico, isto é, o campo material das condutas intersubjeti-vas, dentro do qual nascem, vivem e morrem as relações disciplinadas pelo direito...

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