O trabalho na contemporaneidade e suas implicações na subjetividade dos trabalhadores

AutorAdriana Spilki/Maria da Graça Jacques/Miriam Scopel/Silvana de Oliveira
CargoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
Páginas165-179

Adriana Spilki1

O objetivo desse ensaio2 teórico é o de examinar as transformações em curso no mundo do trabalho e suas implicações na subjetividade dos trabalhadores.

    Work on contemporaneity and its implications on workers' subjectivity

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1 -Introdução

Nas últimas décadas se introduziram complexas mudanças nos contextos de trabalho em um ritmo acelerado. No caso particular do setor produtivo brasileiro, constata-se a coexistência de diferentes estágios de incorporação tecnológica, diversas formas de organização e gestão, relações e contratos de trabalhos variados que se expressam em modos também variados de trabalhar e de viver, de adoecer e de morrer dos trabalhadores.

O tema trabalho é recorrente na trajetória histórica da psicologia desde seus primórdios como disciplina científica. Nos primeiros anos do século XX, sua principal demanda era atender aos interesses do setor industrial em expansão, desenvolvendo medidas psicológicas de avaliação das diferenças individuais, na busca "do homem certo para o lugar certo".

A partir da década de 30, a conjuntura econômica e social redirecionou as contribuições da psicologia, especialmente da psicologia social, para questões referentes à motivação e à satisfação no trabalho. Ganham relevância os estudos sobre clima e cultura organizacionais, a análise dos fatores psíquicos na produtividade dos trabalhadores e a prática psicológica aplicada ao contexto laboral apregoando o equilíbrio, a harmonia e a cooperação.

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Mesmo com a valorização do conflito no processo de crescimento e desenvolvimento organizacionais, a ênfase recaía no emprego de estratégias psicológicas de identificação desses conflitos e sua canalização para a eficiência do sistema.

O tratamento conferido ao tema trabalho pela psicologia foi objeto de censura de autores renomados como Marx e Fromm. Marx (1989) criticava a psicologia do século XIX e perguntava o que se poderia dizer de uma ciência que, orgulhosamente, abstraia o trabalho humano real e concreto, a não ser que se tratava de uma ciência incompleta e desprovida de conteúdo e realidade. Fromm alertava sobre as formas de aplicação do conhecimento psicológico que incrementavam "o empresário de utilidades sem comprometer-se com a situação do trabalhador" (FROMM, 1956, p. 269).

Críticas semelhantes partem de autores que examinam a trajetória da psicologia no Brasil (por exemplo, CODO, 1985 e SPINK, 1996). Mesmo considerando a advertência de que esse não é um privilégio da psicologia, pois os conhecimentos científicos, em geral, são apropriados pelos modos de produção para se manterem e se multiplicarem, importante se faz incluir a contribuição da psicologia, e da psicologia social em particular, que represente uma ruptura com esse tratamento hegemônico conferido ao tema trabalho.

O objetivo desse artigo é examinar as transformações ora em curso no mundo do trabalho e suas implicações na subjetividade dos trabalhadores, a partir de uma perspectiva da psicologia social em que a subjetividade é compreendida como vinculada aos processos sociais e históricos. Procura-se romper a tendência de uma psicologia implicada com a administração de recursos humanos em que seus conhecimentos são empregados tão somente buscando a adaptação dos trabalhadores e o aumento da produtividade. A partir de três recortes ilustrativos, analisa-se as implicações daí derivadas que se expressam nos modos de ser, de viver e de adoecer mentalmente dos trabalhadores.

O primeiro recorte ilustrativo versa sobre a influência do modelo de acumulação flexível no processo de saúde/doença dos trabalhadores, especificamente em trabalhadores com diagnóstico de LER/DORT (Lesões por Esforços Repetitivos/ Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho). Essa síndrome tem tido uma freqüência elevada de incidência em trabalhadores em todo o mundo e, no Brasil, segundo o Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde do Ministério da Saúde (BRASIL, 2001) responde por mais de 80% dos diagnósticos que resultaram em concessão de auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez pela Previdência Social.

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Um segundo recorte ilustrativo examina a implantação da gestão da Qualidade Total, como modo de gestão preconizado pelo modelo de acumulação flexível, disseminada em empresas públicas e privadas e suas implicações nos trabalhadores. A partir de uma análise de sua implementação em um órgão público do poder judiciário, aborda-se como essa lógica se expressa no discurso da eficácia do poder judiciário e na avaliação da qualidade do trabalho dos servidores.

Por último, acompanha-se a trajetória das mutações da função de telefonista/teleoperador, as estratégias de enfrentamento utilizadas e as implicações daí derivadas no processo de saúde/doença mental dessa categoria funcional. A escolha se fez visto que as operações dos chamados "call-centers" são ícones representativos das transformações do trabalho na contemporaneidade.

Esses recortes são examinados com base nas contribuições da psicologia social a partir de uma perspectiva que prioriza as implicações sobre os trabalhadores e suas expressões no processo de saúde/doença mental.

O impacto do sofrimento e adoecimento através do trabalho pode ser analisado por diferentes indicadores e causado por sistemas complexos de relações e condições laborais. Chanlat (1995) aponta para a relação entre os modos de gestão e o processo de saúde-doença dos trabalhadores, destacando que a gestão da saúde depende da gestão do trabalho e que esse processo se faz notar em dois níveis: nos níveis de segurança, a respeito dos pequenos incidentes que apontam a adaptação da organização dos trabalhadores e, em nível de saúde, a partir dos indicadores de patologias e os tipos mais prevalentes.

No entanto, quando se adentra o campo da saúde em seus vínculos com o trabalho, necessário se faz ultrapassar os conceitos "negativos" que definiam a saúde pela ausência de doença e compreender a historicidade dos processos biológicos e psíquicos humanos. Segundo Laurell e Noriega (1989), a biologia humana não é a-histórica e os processos biológicos se dão em grupo que têm uma inserção social específica. Para os autores, o trabalho enquanto atividade especificamente humana, consciente, orientada para um fim é a base da criatividade, por suas qualidades deve ser destacado na compreensão da relação humana com a natureza e das condições de produção de saúde.

Outros enfoques de análise são possíveis e se pretende suscitar esse debate.

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2 -O modelo de acumulação flexível e suas implicações na ocorrência de LER/DORT

Cada sociedade, conforme o momento histórico, o contexto político, social, econômico e cultural, apresenta seus códigos e dispositivos através dos quais os indivíduos balizam sua conduta, No campo do trabalho, constatam-se modificações nesses códigos e dispositivos decorrentes da passagem do modelo taylorista-fordista para o da acumulação flexível, cada qual conformando uma determinada ética do trabalho. O modelo taylorista-fordista se sustentou através do princípio do "Pacto Social" em torno do tripé Estado/ Capital/ Trabalho, no qual a promessa do pleno emprego e a regulamentação do trabalho, garantiriam a distribuição de renda e o crescimento econômico.

No modelo taylorista-fordista de gestão, o trabalho se pautava no controle dos tempos e movimentos, em atividades repetitivas e simples, de forma que o trabalhador tivesse "alto" rendimento através da reprodução mecânica e com menor desperdício de tempo. O planejamento...

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