Contando as mortes de jovens negros: narrativas de um real insustentável

AutorPoliana da Silva Ferreira - Riccardo Cappi
CargoGraduanda em Direito na Universidade do Estado da Bahia. E-mail: polianasferreira@hotmail.com - Doutor em Criminologia pela Université Catholique de Louvain, Professor da UNEB e UEFS. Professor Colaborador da Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRB. Professor do Mestrado Profissional em Segurança Pública da UFBA. Coordenador do Grupo de...
Páginas94-118
Contando as mortes de jovens negros...
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Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 543-467, 2016.
CONTANDO AS MORTES DE JOVENS NEGROS: NARRATIVAS DE
UM REAL INSUSTENTÁVEL
COUNTING THE DEATHS OF THE YOUNG BLACK: NARRATIVE OF A REAL
UNSUSTAINABLE
Resumo
O elevado número de homicídios registrados
nas últimas décadas no Brasil constitui um
grave problema de segurança pública e tem
sido pautado por diversos atores sociais de
diferentes formas. O presente texto propõe
uma discussão de duas importantes narrativas
das mortes de jovens negros. Por um lado,
propõe o estudo da produção das estatísticas
criminais de homicídios, e, por outro, sugere
uma reflexão a respeito da utilização do termo
genocídio para se referir ao problema em tela.
Inicialmente, através de uma abordagem
empírica – pautada na análise de documentos,
visitas in loco e entrevistas semi-estruturadas –
analisamos como a produção das estatísticas de
homicídios pela Secretaria de Segurança
Pública da Bahia, embora pautada num sólido
arcabouço legal e organizacional, carece ai nda
de uma abordagem qualificada das questões
raciais, o que leva a subestimar o número de
mortes de jovens negros na capital baiana,
deixando também de produzir consequências
significativas no plano das políticas voltadas
para reversão deste quadro. Num segundo
momento, partindo da premissa segundo a qual
a forma de nomear um problema já constitui
por si uma maneira de enfrentamento,
abordamos a questão da necessária utilização
do conceito de “genocídio” para evocar o
fenômeno das mortes de jovens negros no
Brasil.
Palavras-chave: Estatísticas de homicídios.
Genocídio. Juventude negra.
Poliana da Silva Ferreira
Graduanda em Direito na Universidade do Estado
da Bahia. E-mail: polianasferreira@hotmail.com
Riccardo Cappi
Doutor em Criminologia pela Université Catholique
de Louvain, Professor da UNEB e UEFS. Professor
Colaborador da Pós-Graduação em Ciências Sociais
da UFRB. Professor do Mestrado Profissional em
Segurança Pública da UFBA. Coordenador do
Grupo de pesquisa em Criminologia UNEB/UEFS.
E-mail: riccardo@terra.com.br
INTRODUÇÃO
A morte, por si mesma, é indizível. Ela só pode ser alcançada de forma oblíqua, isto
é, através de narrativas que, em sua parcialidade, como todas as narrativas, estão sempre em
disputa. Este artigo propõe a discussão de duas narrativas tradicionalmente mobilizadas para
“contar” um fenômeno grave e persistente na sociedade brasileira: as mortes por homicídio,
em larga escala, de jovens negros pobres. Por um lado, trataremos de uma narrativa
construída e utilizada inicialmente na esfera estatal: as estatísticas das mortes por homicídio.
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Por outro lado, discutiremos uma outra maneira de contar as mortes, proposta por segmentos
da sociedade civil, movimentos sociais, bem como por autoras e autores negros, centrada na
mobilização do conceito de genocídio. Duas maneiras de contar tão diferentes, para dar conta
daquilo que mal se pode contar. Duas maneiras de contar que contribuem, cada uma a sua
maneira, para dar conta de uma tragédia que se perpetua.
O elevado número de homicídios registrados, que persiste há algumas décadas no
Brasil, tem sido pautado por diversos p esquisadores, movimentos sociais e meios de
comunicação como um grave problema de segurança pública. As estatísticas oficiais têm
mostrado, de forma inequívoca, que as vítimas têm cor, sexo e endereço. No entanto, as ações
das agências de controle estatal continuam se revelando limitadas para conter os homicídios,
especialmente aqueles que vitimam jovens negros de periferia.
Como é notório, os números produzidos desde os anos 1980 dão conta do
crescimento constante da mortalidade por homicídio no Brasil, com alguns anos de picos.
Dentre as maiores vítimas encontram-se os jovens, com idade entre 15 e 29 anos, negros, do
sexo masculino e moradores de regiões com baixo índice de desenvolvimento humano.
Partindo-se da premissa que a ineficiência das políticas públicas até então adotadas
para reduzir as taxas de homicídios está diretamente ligada, entre outros aspectos importantes,
à forma segundo a qual este problema é visto, nomeado e contabilizado – logo erigido a
problema de política pública –, este texto se depara com a questão das “maneiras de contar”
um determinado fenômeno. Assim, o primeiro objetivo é a apresentação de alguns resultados
de uma pesquisa empírica realizada recentemente1 centrada na seguinte pergunta: como são
produzidas as estatísticas de homicídio no Estado da Bahia? O segundo objetivo deste texto
está atrelado à necessidade de refletir conceitualmente sobre os termos utilizados para definir
o fenômeno que nos preocupa: o gradual aumento do número de homicídios que atingem
jovens negros e pobres.
A forma de nomear e conceituar o fenômeno é importante, já que o ato de nomear
constitui a primeira modalidade de seu enfrentamento. Neste sentido, a operação de
conceituar a matança generalizada de jovens negros e pobres ganha importância, pois gera
uma série de implicações, tanto no campo acadêmico, quanto no plano político e jurídico.
Assim, será importante discutir a possibilidade de utilização – a nosso ver necessária – do
1 Pesquisa financiada pelo Programa de Iniciação Científica da Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas, 2014/2015, cujo título foi “Contando as mortes: análise das maneiras de ver os homicídios de
jovens em Salvador”.

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