Informação para o consumo de alimentos transgênicos: atendimento da dignidade do cidadão brasileiro

AutorAndreza Cristina Baggio; Antônio Carlos Efing
CargoDoutoranda em Direito Econômico e Sócio Ambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professor de "Direito do Consumidor" na Graduação da PUCPR
Páginas55-79

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Introdução

As nações do mundo preocupam-se com a grave crise alimentar que se apresenta. O preço dos produtos agrícolas no mercado internacional elevou-se consideravelmente, afetando diretamente mais de 37 países da África, da Ásia e da América Latina, perfazendo um total de mais de 800 milhões de pessoas. 12Enquanto isso, as empresas transnacionais processadoras de grãos, inclusive aquelas responsáveis pela produção das polêmicas sementes transgênicas, veem seus lucros aumentarem.

Há quem sustente que a crise mundial que ora se apresenta é resultante das políticas neoliberais de enfraquecimento da produção nacional de alimentos, que obrigaram os produtores a atuar em cultivos eminentemente comerciais para companhias transnacionais, e a comprarem seus alimentos das mesmas Page 56 transnacionais no mercado, as quais monopolizam a produção, a transformação e a distribuição dos alimentos3.

Em meio a esse debate, surge a seguinte questão: seriam os alimentos transgênicos a solução para a crise alimentar? Desta indagação, óbvias preocupações sobre a segurança alimentar e a qualidade dos alimentos que são postos à disposição do consumidor devem ser sopesadas.

Sendo o acesso ao alimento necessidade básica e primária, meio de sobrevivência, subsistência, e garantia de dignidade humana, a questão ganha relevo. E no atual contexto da sociedade de consumo, cria-se a polêmica: o consumo de alimentos transgênicos garante a proteção da dignidade da pessoa humana? É possível dizer que o cidadão é capaz de consumir estes alimentos de forma consciente e devidamente informado já que sequer a ciência tem respostas às indagações sobre sua segurança para a vida humana?

A partir destas perguntas, este estudo tem por objetivo trazer à discussão a importância da proteção da dignidade da pessoa humana como fundamento do direito a consumir alimentos saudáveis, bem como da correta informação para o cidadão brasileiro a respeito dos produtos consumíveis que estão à sua disposição, visando concluir que o fornecedor é diretamente responsável em proporcionar este consumo seguro, consciente e informado, à medida que atender aos princípios do Código de Defesa do Consumidor (como transparência, boa-fé, confiança) e da norma constitucional.

E para tratar do assunto, iniciou-se este breve estudo com a exposição do tema dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, tendo por base a doutrina nacional, no intuito de levar o leitor a refletir sobre a proximidade destes conceitos. No mesmo tópico, após uma exposição necessária a respeito da constitucionalização dos direitos do homem, e a inserção da dignidade humana como centro dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, é colocado em discussão o Código de Defesa do Consumidor e sua vocação constitucional, bem como o direito fundamental de acesso ao piso vital mínimo, para se concluir que o acesso ao alimento é direito fundamental do ser humano.

Em seguida, são analisados os princípios fundamentais do Código de Defesa do Consumidor: transparência, informação e confiança, com abordagem necessária ao princípio da boa-fé, já que, segundo as premissas deste ensaio, é por Page 57 meio da observância destes três pilares que se oportuniza ao consumidor o consumo consciente dos alimentos transgênicos e, portanto, o pleno exercício de seu direito fundamental de acesso ao alimento.

Por fim, analise-se a legislação brasileira sobre biossegurança e rotulagem dos alimentos geneticamente modificados, para que se possa concluir se a dignidade humana do consumidor, representada pelo consumo corretamente informado do alimento transgênico, está sendo respeitada. Alguns pareceres da CTNbio são trazidos à colação no intuito de demonstrar como são tomadas as decisões referentes à liberação para comercialização dos produtos que são consumidos pelos cidadãos brasileiros e levar o leitor a compreender as reflexões e as conclusões deste trabalho.

1 Dignidade da pessoa humana e o direito ao consumo de alimentos como direito fundamental

Dignidade é um valor intrínseco ao direito à vida. Como já salientou com exemplar excelência Lôbo4, "dignidade é tudo aquilo que não tem preço, segundo conhecida e sempre atual formulação de Immanuel Kant". É oportuno aqui lembrar a lição de Kant, para quem a pessoa humana constitui um fim em si mesma, vedada a sua instrumentalização5. De fato, para o ser humano, sentir-se digno é sentir-se respeitado, valorizado, lembrado em suas expectativas, reforçado em suas qualidades. O sentimento de dignidade para o homem é o sentimento de força e coragem que impulsiona o viver. Aquele que busca a realização de seus sonhos e o cumprimento de suas metas de bem-estar, a constituição de uma vida de satisfação psíquica, emocional e econômica, necessita sentir o reconhecimento de seus esforços e o salutar desenvolvimento de suas atividades em consonância com a sua inserção no meio em que vive.

A expressão dignidade da pessoa humana foi introduzida no vocabulário do homem contemporâneo de forma ampla, sendo difundida de forma corrente tanto quanto a expressão cidadania, sendo tal conceito revitalizado e elevado ao patamar de princípio pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e pela Lei Fundamental de Bonn (1949) e positivado como uma reação aos horrores da Segunda Grande Guerra Mundial6. A expressão dignidade da pessoa humana está Page 58 relacionada com a defesa dos direitos humanos fundamentais, sob a noção de que dignidade é o atributo do ser: a natureza do ser humano gera a necessidade de respeito às suas necessidades básicas, independentemente de sua origem, condição social, econômica, etc. Aqui, cabe transcrever Barroso7, que com propriedade bem afirma: "Passar fome, dormir ao relento, não conseguir emprego, são, por certo, situações ofensivas à dignidade humana".

Na contemporaneidade, o sujeito de direitos é a pessoa humana, aquele titular de direitos humanos fundamentais, do direito ao piso mínimo existencial como saúde, moradia, vestuário, alimentação e educação, as condições básicas para que possa realizar-se. Nesta linha de pensamento, o princípio da proteção da dignidade da pessoa humana foi alçado ao patamar de fundamento basilar dentro do texto constitucional brasileiro8 e, como reconhece Sarlet9, todos os direitos fundamentais contemplados na Constituição Federal de 1988 encontram sua vertente nele. A proteção à dignidade da pessoa humana é norma fundamental, voltada a garantir faculdades jurídicas necessárias à existência humana10.

Se a sociedade dos séculos XVIII a XIX foi marcada pelo individualismo, pela busca da segurança jurídica, pela autonomia da vontade e pelo Estado de Direito, este, após a Primeira Guerra Mundial, é sucedido pelo Estado Social de Direito, cujas características principais são a preocupação com os direitos sociais e a intervenção estatal na atividade econômica. Segundo observa Tepedino:

Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento11.

Essa ideia tem sentido dentro do fenômeno da constitucionalização do Direito Privado. Hoje, o estatuto jurídico do ser humano deixou de se tratar de mera preocupação patrimonialista, e o homem ganha espaço dentro do texto constitucional. É o que Cortiniano Júnior chama de "o novo habitat do homem"12. A pessoa humana tornou-se o centro do ordenamento jurídico e as preocupações com Page 59 a sua dignidade transcendem o mero direito patrimonial, como bem observa Perlingieri, que nos traduz a importância dos direitos da personalidade:

A personalidade é, portanto, não um direito, mas um valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente imutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unidade do valor envolvido. Não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados no seu interesse e naqueles de outras pessoas. A elasticidade torna-se instrumento para realizar formas de proteção também atípicas, fundadas no interesse à existência e no livre exercício da vida de relações13.

Conclusão necessária da análise detida do texto constitucional brasileiro é a de que, ao tutelar a dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal protege os direitos do consumidor. A Lexis Legum incorporou em suas normas programáticas as recentes tendências de publicização do direito privado14, consignando expressamente a proteção aos interesses do consumidor no artigo 5º, o qual trata exclusivamente dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. O inciso XXXII do artigo em comento dispensa à tutela do consumidor o status de direito fundamental, enquanto que, ainda no texto constitucional, o artigo 170, em seu inciso V, eleva a defesa do consumidor a princípio geral da ordem econômica.

E por determinação do texto constitucional (artigo 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias) surge, em 1990, a Lei 8.078, o tão propagado Código de Defesa do Consumidor, lei que por vocação constitucional tem por corolário a defesa dos direitos fundamentais do consumidor15. Referido...

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