O Direito ao Desenvolvimento dos Consumidores e a Tutela Coletiva dos seus Interesses Individuais

AutorRoberto Senise Lisboa - Priscila Senise Lisboa
CargoLivre-docente e doutor em Direito Civil pela USP - Membro do Ministério Público de São Paulo
Páginas15-42

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1. O princípio geral da ordem econômica de defesa dos direitos dos consumidores

Uma análise perfunctória do texto constitucional já traz elementos seguros que evidenciam a defesa dos consumidores como um direito e garantia fundamental individual e coletivo (art. 5º, XXXII), tais quais os direitos dos consumidores como um dos princípios gerais da ordem econômica (art. 170, V).

Mencionados dispositivos constitucionais são expressamente lembrados pelo art. 1º da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, que dispõe que o Código de Defesa do Consumidor é norma jurídica de ordem pública e de interesse social. Destarte, mesmo em situações de averiguação da conduta dos consumidores como agentes econômicos, deve-se reconhecer o objetivo de se conceder aos destinatários finais de produtos e serviços uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Todo agente econômico, assim como qualquer pessoa, possui o direito ao desenvolvimento, que é reconhecido pela Declaração Internacional de 1986, da qual o Brasil é signatário, como direito humano.

Isso significa que após 38 anos da entrada em vigor da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, por maioria esmagadora de votos (apenas um voto contra, o dos EUA), a Declaração de Viena elevou o direito ao desenvolvimento ao patamar de direitos humanos.

Cumpre, pois, analisar o que vem a ser o direito ao desenvolvimento e quais as implicações do seu reconhecimento como direito humano para a defesa dos interesses dos consumidores.

Dentre as variadas perspectivas que esse tema oferece, este singelo estudo tratará da questão da defesa dos chamados interesses individuais homogêneos, interesses individuais defendidos coletivamente, como instrumento de proteção do desenvolvimento biopsíquico e econômico dos consumidores.

2. Direito ao desenvolvimento como direito humano

O direito ao desenvolvimento é considerado por muitos autores um "direito humano de terceira geração"1, que surge para dar efetividade aos direitos civis e políticos, assim como os direitos sociais. Dai a sua condição de direito de terceira geração ou "terceira dimensão"2, que, de acordo com a orientação da Organização das Nações Unidas (ONU), abrange não apenas o desenvolvimento econômico dos Estados, mas também a satisfação das necessidades econômicas e sociais indispensáveis à dignidade humana.

A expressão direito ao desenvolvimento consta, pela primeira vez expressa-

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mente referenciada como um direito humano, em trabalho de lavra de Kelba M´Baye, publicado no ano de 1971:

"(...) Le droit au développement intègre les droits et libertés publiques. Il est un droit de l´homme".3

O direito ao desenvolvimento foi concebido no âmbito dos direitos dos povos e consagrado, primeiramente, pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos, aprovada na 18ª Conferência de Chefes de Estado e Governo, que se reuniram no Quênia, em 1981.

Coube à Declaração das Nações Unidas sobre o direito ao desenvolvimento, de 1986, estabelecer que o direito ao desenvolvimento é um dos direitos humanos.

A Conferência de Viena, de 1993, reconheceu o direito ao desenvolvimento como direito fundamental.

Determinando o papel de sujeito ativo desse direito à pessoa humana e todos os povos, pode-se extrair a partir dessa declaração que o direito ao desenvolvimento tem por objetivo final a dignidade da pessoa humana e se sujeita à proteção, à luz do que estabelece o direito positivado brasileiro, como um direito coletivo, difuso e individual homogêneo.4

O direito ao desenvolvimento é um direito humano fundamental, "inalienável", universal, indivisível, interdependente e inter-relacionado.

Para que o direito ao desenvolvimento seja alcançado em sua totalidade, ou seja, seja satisfeito em todas as suas dimensões, é preciso que seu caráter multidimensional e interdependente seja amplamente respeitado.

Quanto à interdependência entre todos os direitos humanos, conforme enunciado em Viena, os signatários da conferência lembraram que o direito ao desenvolvimento sempre se encontra em harmonização com os direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais (1986).

O direito ao desenvolvimento está fundado na solidariedade social, na superação da miséria, em melhores condições sócio-econômicas, no poder da demo-cracia e na efetivação da vida digna para todo ser humano.

3. Direito ao desenvolvimento dos consumidores

O direito ao desenvolvimento dos consumidores deve ser abordado sob dois aspectos: o econômico e o social. Inicialmente, faz-se necessária a distinção conceitual entre desenvolvimento e crescimento econômico.

O desenvolvimento, em sentido lato, está ligado à ideia de paz mundial5,

como direito fundamental do homem, coletivo e individual. Esse sentido dado ao desenvolvimento, como um direito fundamental, impõe-lhe um caráter de construtivismo, ou seja, lhe dá o status de ferramenta para a construção de uma melhor realidade social para o futuro.

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Analisando-se o desenvolvimento consciente, estabelece-se uma ordem de prioridades, reconhecendo-se a importância do desenvolvimento técnico-científico-econômico, desde que não se desrespeite o desenvolvimento moral.

Nesse sentido, Amartya Sen propõe a aproximação da ética e da economia.6 O conceito de desenvolvimento possui uma incontável série "de modificações de ordem qualitativa e quantitativa, de tal maneira a conduzir a uma radical mudança de estrutura e da própria sociedade do país em questão".

O desenvolvimento econômico é o processo de sistemática acumulação de capital e de incorporação do progresso técnico ao trabalho e ao capital, que leva ao aumento sustentado da produtividade ou da renda por habitante e, em consequência, dos salários e dos padrões de bem-estar de uma determinada sociedade.8Por outro lado, o crescimento é aquele que consiste em ordem apenas quantitativa, ou seja, no aumento da população ou do produto, não refletindo necessariamente a melhoria de condições de vida da sociedade.

O crescimento pode estar associado ao evento ou a algum fenômeno cíclico principiado a partir de um impulso exógeno. E, passado esse impulso, o crescimento para ou, ainda, volta ao estado anterior. Crescimento econômico de um Estado revela aumento da produtividade, não necessariamente a melhoria da qualidade de vida.

Assim, a preocupação sobre o crescimento econômico importa necessariamente a identificação das razões que tornam as sociedades mais propensas a investirem e, dessa forma, tornarem-se mais produtivas.9

Como ensina Angus Maddison, o crescimento econômico implica saber quais as razões que tornam uma sociedade mais produtiva.10Segundo ele, haveria quatro razões básicas para tanto:

  1. o progresso tecnológico;

  2. os investimentos em capital humano;

  3. os investimentos em capital físico; e

  4. a eficiência na organização econômica que se traduz na estrutura de incentivos que induzem os indivíduos a inovar e acumular.

    O crescimento é comumente visto quando há um relativo crescimento do PIB e da renda per capita de um determinado Estado, mas não há alteração da estrutura produtiva e das suas características sociais.

    Há, neste sentido, um surto e não propriamente um processo de desenvolvimento, pois assim que cessar a causa de sua origem, o crescimento irá perdendo a dimensão que possuía para, com o tempo, toda a estrutura social e seus problemas voltarem a ser como antes.

    Por isso, o desenvolvimento não é o mesmo que crescimento, haja vista que o crescimento pressupõe um aumento da renda e do PIB de um país, mas não

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    implica qualquer mudança estrutural profunda. Quando se vê um país em aparente crescimento, temos que analisar se houve a sua transformação estrutural, ou seja, se o país realmente já se desenvolveu; ou se a situação é apenas de crescimento, pois o fato analisado não se sustentará justamente porque não afetou a estrutura desse país. Em geral, os países subdesenvolvidos possuem alguns traços comuns, que são :

  5. uma baixa renda per capita;

  6. a desigualdade na distribuição dessa renda, com extremos de riqueza e de pobreza;

  7. altas taxas de mortalidade e de natalidade;

  8. alta participação do setor primário da economia na formação da renda, setor secundário (indústrias) atrofiado, e o terciário inflado, possuindo grande contingente de serviços de pouquíssima produtividade (é uma espécie de desemprego disfarçado);

  9. uma baixa produtividade de mão de obra;

  10. baixos padrões médios de consumo e de qualidade de vida (instrução, nível sanitário, adequação alimentar e outros da espécie);

  11. uma forte influência de oligarquias na legislação e na sua aplicação, bem como mau funcionamento ou inexistência de instituições políticas aprimoradas. Diante do exposto, pode-se afirmar que um país que está em crescimento não é necessariamente um país que está se desenvolvendo, pois "a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser o participante ativo e o beneficiário do direito ao desenvolvimento".12

    O "direito ao desenvolvimento é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um direito humano fundamental e indisponível, assim como os demais direitos fundamentais, e reconhece-o como um direito a igualdade de oportunidades para todas as pessoas e todas as nações".13"É difícil pensar que o desenvolvimento possa realmente ser visto independentemente de seus componentes econômicos, sociais, políticos ou jurídicos".14

    Nesse contexto, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)...

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