Consumidores e agricultura orgânica em Portugal: significados e (des)confiança

AutorMónica Trüninger
CargoDoutorada em Sociologia pela Universidade de Manchester (Reino Unido)
Páginas66-86
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2020v19n44p66
6666 – 86
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Consumidores e agricultura
orgânica em Portugal:
significados e (des)confiança1
Mónica Truninger2
Resumo
Nos últimos anos do corrente século, o sector da agricultura orgânica tem visto as suas áreas
de produção, cotas de mercado e número de consumidores a crescer. Na União Europeia, o en-
quadramento legal desse modo de produção data do início dos anos 90 do século XX, mas ao
longo dos anos essa legislação tem sido alvo de várias alterações. Apesar de um enquadramento
legal apertado, surgem, por vezes, situações de fraude ou controvérsia em torno da fiscalização
e certificação dos produtos orgânicos. As falhas dos sistemas periciais, técnicos e científicos no
controlo e monitorização da produção alimentar orgânica, mesmo que ocorram excecionalmente,
quando são divulgadas pelos media acabam por aumentar, junto dos consumidores, a descon-
fiança e a falta de credibilidade na origem de produção desses alimentos. Neste texto, com base
em dados qualitativos e quantitativos, analisam-se os significados que os consumidores têm so-
bre os produtos orgânicos, muitas vezes confundindo-os com os produtos que cultivam em casa
ou que lhes são oferecidos pelas suas redes familiares, de amigos e vizinhos. Também se analisam
os mecanismos de construção de uma relação de confiança com os alimentos orgânicos, que
passam tanto pelo conhecimento pericial inscrito num certificado e num logótipo como também
pelo conhecimento tácito, leigo, experiencial e sensorial que têm com esses alimentos no seu
quotidiano. Conclui-se que os consumidores usam diferentes e múltiplas estratégias, conjugando
1 Secções deste texto têm por base o artigo “As bases plurais da confiança alimentar nos produtos orgânicos:
da certificação ao ‘teste da minhoca’” (TRUNINGER, 2013, p. 81-102). O presente texto sofreu substanciais
adaptações, contendo partes totalmente novas para apoiar melhor os argumentos defendidos. Os dados
sobre agricultura orgânica baseiam-se num trabalho de equipa mais vasto no âmbito do Segundo Grande
Inquérito sobre Sustentabilidade. Estou grata à equipa constituída por Luísa Schmidt, João Graça, Susana
Fonseca, Luís Junqueira e Pedro Prista. Um especial agradecimento ao Luís Junqueira, por ter elaborado uma
primeira análise dos dados qualitativos dos grupos focais, os quais foram utilizados, adaptados e reescritos
para este texto. O inquérito foi realizado com o apoio da Missão Continente do grupo Sonae.
2 Doutorada em Sociologia pela Universidade de Manchester (Reino Unido). Investigadora auxiliar no Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde coordena vários projetos nacionais e internacionais na
área da alimentação, consumo e sustentabilidade.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 19 - Nº 44 - Jan./Abr. de 2020
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o conhecimento pericial com o conhecimento mais leigo, para se assegurarem de que o que
ingerem nos seus corpos são mesmo produtos orgânicos.
Palavras-chave: Agricultura orgânica. Consumidores. Desconfiança. Sistema alimentar. Signifi-
cados de produtos orgânicos.
Introdução
Nas décadas nais do século XX, e nas primeiras do século vigente,
surgiram vários escândalos alimentares na Europa, sendo Portugal também
afetado por essas crises. Problemas como a BSE (ou, vulgo, ‘crise das vacas
loucas’), febre aftosa, gripe das aves, a fraude da carne de cavalo, entre
outras, tornaram-se a face visível de processos mais latentes que vinham
paulatinamente a acentuar-se desde o pós-guerra: a intensicação da pro-
dução agroalimentar; a concentração de poder nas grandes redes varejistas
e a consequente marginalização da agricultura familiar de pequena escala;
a conguração de novas dinâmicas espaciotemporais que zeram provocar
alterações nos limites naturais da sazonalidade e frescura; a crescente se-
paração entre produção e consumo nos espaços cartográcos e cognitivos;
entre outras mudanças (TRUNINGER, 2013, p. 81).
Essas recongurações no sistema alimentar aumentaram a pressão
para a emergência e aceleração de cadeias alimentares curtas e alternativas,
sendo a agricultura orgânica um dos sistemas de produção agrícola que
ganharam substancial projeção na Europa e no resto do mundo. A agri-
cultura orgânica é um sistema de produção agrícola e pecuário que tenta
minimizar os impactos sociais e ambientais no planeta, através da forma
de cultivo, dos usos ecientes da água, das restrições na aplicação de quí-
micos sintéticos nas plantas e de antibióticos e hormonas nos animais, dos
cuidados com o solo e do respeito pelos princípios do bem-estar animal.
Esse sistema de produção agropecuário vem, de certo modo, em conjun-
to com outras alternativas alimentares (e.g., redução da proteína animal,
Dieta Mediterrânica), responder aos apelos para a implementação de uma
transformação profunda dos hábitos alimentares globais (ver o relatório
da comissão EAT Lancet, WILLETT et al., 2019). Essas preocupações
têm em conta não só os impactos da alimentação na saúde humana, como
também os impactos da produção agrícola no ambiente e o contributo que
esta tem para o aumento dos gases com efeito de estufa, no cenário atual
de alterações climáticas (GRAÇA et al., 2019).

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