O Consumidor e o Novo Código Penal Brasileiro

AutorJosé Geraldo Brito Filomeno
CargoAdvogado, consultor jurídico
Páginas153-174

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1. Considerações gerais

Quando a comissão especial de juristas incumbida da elaboração de anteprojeto de uma lei nacional brasileira de proteção e defesa do consumidor e designada pelo então ministro da justiça Paulo Brossard, em junho de 1988, começou o seu trabalho, desde logo se deparou com uma dúvida signiicativa: deveria ela, ou não, antes de mais nada, preocupar-se com uma tutela penal do consumidor, ao lado das tutelas civil e administrativa, uma vez que, analisadas as legislações de quatorze países diferentes à época, somente a da Província de Quebec, Canadá, continha dispositivos dessa natureza1.

Referida preocupação foi debatida longamente no âmbito de outra comissão especial, instituída paralelamente àquela primeira pelo então procurador geral de justiça do Estado de S. Paulo, Cláudio Ferraz de Alvarenga, por nós presidida, e cujo objetivo era precisamente subsidiá-la com esses estudos2.

Com efeito, o primeiro propósito das comissões foi no sentido de não se arranhar a legislação penal vigente, tanto a codiicada quanto a extravagante e, o que era mais importante: tipiicar condutas ainda não contempladas nos casos em testilha, como os abusos em matéria de publicidade ("enganosa" e "abusiva"), bem como outras consideradas de tal forma graves que, além do tratamento de natureza administrativa e civil, estariam a demandar igualmente o tratamento penal.

E aqui valeu a advertência de Othon Sidou3no sentido de que seria na prática impossível, senão inútil, preverem-se todos os fatos que viessem a aligir o consumidor - e nós acrescentaríamos -, as fraudes e outros comportamentos que o viessem a lesar de maneira grave e muitas vezes de forma irreparável. Isto porque sempre haveria algo a prevenir, mas igualmente alguém disposto a burlar as normas demasiadamente amplas estabelecidas, donde a necessidade da sua constante atualização, sem nos esquecermos, igualmente, das fraudes de natureza civil e infrações administrativas. Até porque também nesse âmbito nos havíamos deparado com um verdadeiro cipoal de normas difusas por todo o ordenamento jurídico, muitas vezes até conlitantes entre si, o que igualmente ocorreria no âmbito criminal4.

Pareceu-nos claro desde logo, todavia, que num futuro ainda incerto, contudo previsível, haveria uma consolidação de toda - ou quase toda - a legislação penal em um novo Código Criminal.

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Nesse sentido, tracemos um retrospecto histórico, ainda que breve, a respeito de tentativas, seja no intuito de se modernizar a antiga Lei de Crimes contra a Economia Popular, de 1951, seja no da consolidação de normas dessa mesma natureza.

2. Tentativas anteriores de sistematização

2.1. Atualização da lei de crimes contra a economia popular - Em 1984, o então ministro da justiça, Ibrahim Abi Ackel, havia instituído comissão especial com vistas à atualização da Lei de Crimes contra a Economia Popular (Lei 1.521/51), certamente se tendo em vista a adoção, cerca de algum tempo depois, de planos econômicos que tinham como alvo o crônico processo inlacionário e fraudes cíclicas contra o público em geral.

Tivemos a honra, naquela oportunidade, em que ainda exercíamos as funções de procurador de justiça do consumidor nas instalações do Procon-SP, de assessorar um dos membros da aludida comissão, o desembargador Diwaldo Sampaio, do Tribunal de Justiça paulista.

Após ingentes esforços, o trabalho foi entregue ao Ministério da Justiça, que o havia encomendado, mas, a partir de então, nada se falou a respeito, nem houve o encaminhamento de qualquer projeto nele baseado ao Congresso Nacional.

Em síntese, os trabalhos propunham a manutenção dos principais tipos penais ainda vigentes na referida Lei de Crimes contra a Economia Popular, bem como a inclusão de outros, mais consentâneos com a realidade socioeconômica então vigente5.

À falta, portanto, de um novo instrumental mais consentâneo com essa realidade (i.e., com a edição dos Planos Cruzados I e II, Plano Verão etc.), tivemos de organizar, em menos de quinze dias, e com a imprescindível colaboração dos colegas de Ministério Público Marco Antônio Zanellato e Roberto Durço, um livro que serviria de orientação aos demais promotores de justiça do Estado de

S. Paulo - Reforma Econômica6 -, o qual continha toda a parafernália legislativa ligada ao tema economia popular, sobretudo os decretos-leis editados pela Presidência da República, portarias da extinta Sunab, modelos de denúncias por infringência a tabelamento e congelamento de preços etc., além, obviamente, da legislação básica para tanto (i.e., a Lei 1.521/51 e a Lei Delegada 4/62).

2.2. Projeto de Lei 2.176/90 - Cinco anos mais tarde após a referida tentativa frustrada de reformas da legislação de tutela da economia popular, ou

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seja, em 1989, mediante a Mensagem Presidencial 179/89, foi encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.176/90 que, em suma, adotava as linhas gerais do nosso trabalho de 1984. Ou seja, mantidos os tipos penais mais relevantes da lei de crimes contra a economia popular, introduzia outros, reputados essenciais à sustentação dos planos econômicos então concebidos, bem como simpliicava os procedimentos penais aplicáveis a essa classe de delitos e dava outras providências complementares.

Referido projeto, entretanto, foi rejeitado pela Câmara dos Deputados e, ao ensejo da posse do novo governo federal, tentou-se reavivá-lo, com algumas modiicações, mediante a edição de medidas provisórias.

2.3. Medidas provisórias - Com efeito, com a instituição do chamado Plano Brasil Novo que, dentre outras providências, decretou o conisco de poupanças e depósitos bancários, foram editadas: a) Medida Provisória 153, de 15 de março de 1990, deinindo os crimes de abuso do poder econômico; e b) Medida Provisória 156, da mesma data, que deinia crimes contra a fazenda pública, estabelecendo penalidades aplicáveis a contribuintes, servidores fazendários e terceiros que os praticassem.

Surgiu então grande celeuma a respeito do aspecto de sua constitucionalidade, ainda que calcadas ambas as medidas provisórias no disposto pelo art. 62 da Constituição Federal de 1988, chegando-se mesmo a intentar ação direta de declaração de sua inconstitucionalidade pela Procuradoria Geral da República, até que o próprio Governo Federal houve por bem revogá-las, por intermédio da Medida Provisória 175, de 27 de abril de 19907.

2.4. A Lei 8.137/90 - Embora estivéssemos trabalhando com as duas comissões com vistas à elaboração do anteprojeto de código do consumidor, de forma alguma fomos informados da existência de outro grupo de trabalho que deu origem à Medida Provisória 175/90 e a estudos que culminaram na vigente Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Ou seja, fomos surpreendidos pelo fato de, aprovada mesmo após o código do consumidor, com vacatio legis de seis meses (com vigência somente a partir de 11 de março de 1991), a lei surpresa ter sido publicada em 27 de dezembro de 1990, entrando imediatamente em vigor.

Tanto assim que alguns aspectos têm ainda sido discutidos sobre se algum dispositivo da Lei 8.137/90 teria sido ou não revogado pelo código do consumidor, em virtude de cuidarem de questões idênticas ou ao menos semelhantes como no caso, por exemplo, no inciso VII do art. 7º da primeira em confronto com os artigos 66 e 67 do segundo8.

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2.5. Crimes contra a economia popular ou contra as relações e consumo?

- A alocução economia popular sem dúvida espelharia melhor o objeto de tutela da legislação não apenas de ordem penal, como também administrativa e civil. Ou seja, tradicionalmente, desde os tempos da draconiana legislação de 1938, da época do Estado Novo de Getúlio Vargas9, cunhou-se referida expressão para designar todo e qualquer objeto de interesse, material ou imaterial, que se relacionasse com o bem-estar dos cidadãos (e.g., bens e serviços essenciais), e que venha a ser ameaçado ou prejudicado por ação ou omissão de terceiros, em geral, e pelos agentes econômicos, em particular, sobretudo em períodos de escassez e crises socioeconômicas.

Com efeito, consoante as anotações de Eurico Castello Branco10:

"A Constituição é explícita: equipara os crimes contra a economia popular aos cometidos contra a segurança do Estado - no que põe em pé de igualdade, irmanando-se e confundindo-os, o Estado e o povo11- e prescreve para os mesmos foro especial. Antigamente, os crimes contra a economia popular eram abrangidos até certo ponto, pela legislação penal. Como, porém, a matéria é muito fugidia, os especuladores e arquitetadores de ´planos´ tinham campo livre, para as suas atividades suspeitas, pois desfrutavam a certeza de que a diiculdade da prova, a chicana dos advogados e os escrúpulos naturais do formalismo jurídico dos tribunais comuns lhes asseguravam a impunidade. Os crimes previstos na lei nº 869 já tinham sido mais ou menos abrangidos pela legislação passada, embora com penalidades menores. No entanto, os exemplos de crimes impunes são fáceis de apontar, mesmo os que passaram...

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