A Construção de Uma Teoria do Dano Existencial no Direito do Trabalho

AutorFlaviana Rampazzo Soares
Ocupação do AutorCoordenadora
Páginas117-129

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1. Introdução

Desde a década de 1950 é possível identificar, na doutrina, entendimento no sentido de que, em matéria de direito de danos, aspectos existenciais pessoais devem ser merecedores de proteção jurídica1.

A partir dessa afirmação, surgem dois pontos passíveis de exploração: o primeiro, que representa a construção de um sentido e a definição do alcance da expressão “aspectos existenciais pessoais” e o segundo, a conformação de referidos aspectos ao direito de danos.

Esse estudo tem como objetivo a análise de tais pontos, bem como a investigação a respeito da possibilidade de construção de uma doutrina relacionada à figura do dano existencial, observadas as particularidades típicas do direito do trabalho embora nesse texto, pelas limitações de espaço, não seja possível abordar os importantes aspectos relacionados a indenização por dano existencial.

Para tanto, é necessário estabelecer o substrato axiológico dessa espécie de dano e suas feições, analisando-se a relevância e a pertinência de tais questionamentos na atualidade.

2. Breve histórico do surgimento e da matriz do dano existencial

“Dano existencial” é a tradução da expressão danno esistenziale, cunhada no direito italiano2.

O danno esistenziale surgiu a partir de um problema, no direito italiano: o art. 2.0433do Código Civil foi tradicionalmente considerado como o fundamento legal clássico dos danos patrimoniais, e o art. 2.0594do mesmo Código, costumava ser utilizado como o fundamento das demandas indenizatórias por danos extrapatrimoniais (também conhecidos como danos imateriais). O desafio, a partir desse entendimento, é que o art. 2.059 limita as hipóteses de indenização aos casos taxativamente previstos em lei, ou seja, trata-se de um sistema de tipicidade, com suas construídas limitações jurídicas, notadamente quando há conduta penalmente tipificada.

Para evitar que hipóteses não previstas em lei, mas que gerassem danos extrapatrimoniais, não fossem indenizadas, a jurisprudência utilizou-se de um artifício: a busca da tutela à saúde, prevista no art. 32 da Constituição italiana, como fundamento para indenizar danos extrapatrimoniais, independentemente das amarras do art. 2.059 do Código Civil italiano.

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Assim, doutrinária e jurisprudencialmente, criou-se o denominado danno biologico5, entendido como um atentado à saúde da pessoa, sendo a expressão “saúde” entendida da forma mais ampla possível para este fim, como o completo bem-estar pessoal, físico, psíquico e social.

Com isso, superou-se um problema, criando outro. Houve uma incontrolável ampliação do conceito e da abrangência do danno biologico, tendo ocorrido casos de violações que não se enquadravam tecnicamente como dano à saúde, mas que geraram o dever de indenizar.

A doutrina italiana, analisando um conjunto de decisões judiciais a respeito do dos danos imateriais, entendeu que era necessário esclarecer o que seria o dano extrapatrimonial, o dano moral, o dano biológico, enfim, tornara-se premente deixar as figuras jurídicas relacionadas aos interesses imateriais pessoais tecnicamente mais claras e ordenadas, para que se pudesse ter maior exatidão jurídica tanto na identificação do dano sofrido, quanto na adequada indenização ou definição da melhor tutela à vítima.

A solução foi proposta pelos juristas italianos Cendon e Ziviz6, ao deixarem claro que o dano extrapatrimonial é um gênero, que abrange elementos intangíveis, ou seja, trata de interesses jurídicos relevantes da pessoa, vinculados aos direitos de personalidade, sem repercussão econômica imediata.

Desse gênero, emergem espécies, as quais incluem o dano moral propriamente dito (dano moral puro), o dano à imagem, o dano à vida privada, o dano à intimidade, o dano à saúde (também conhecido como dano biológico), o dano estético, o dano à identidade pessoal, o dano à integridade intelectual, o dano à honra e o dano existencial.

No direito italiano, a Corte di Cassazione pronunciou expressamente a autonomia da espécie dano existencial na Decisão n. 7.713, de 7 de junho de 20007e, assim, reconheceu que o dano existencial estava ao lado do dano patrimonial, do dano moral puro e do dano biológico.

Mais de uma década transcorreu, e, atualmente, os doutrinadores e juízes italianos dividem-se entre existencialistas (defensores da autonomia do dano existencial) e não existencialistas (partidários de uma tutela indenizatória genérica por danos à pessoa, sem reconhecer autonomia ao dano existencial), em face de recentes decisões da Corte di Cassazione italiana, no sentido de que a indenização por danos extrapatrimoniais deveria ser onicompreensiva8, questão esta que tem causas e consequências específicas, sem raiz jurídica direta9.

De toda forma e independentemente da questão da nomenclatura utilizada, o fato é que tanto o poder judiciário italiano, quanto o de outros países europeus, costumam indenizar alterações indevidas e prejudiciais quanto a aspectos existenciais pessoais.

3. Percurso do dano existencial no Brasil

Diferentemente da Itália, o Brasil não incorporou a figura do dano existencial para resolver algum problema legislativo, no plano jurisprudencial.

A tutela dos que sofrem danos extrapatrimoniais está pre-vista tanto na Constituição Federal (em especial no art. 5º,
X) quanto no Código Civil (notadamente nos arts. 186 e 927, bem como da parte que trata dos direitos de personalidade). Porém, tanto o texto constitucional, quanto o texto infra-constitucional, costumam utilizar uma nomenclatura inapropriada, equiparando o gênero dano extrapatrimonial com a espécie dano moral. Esse descompasso, porém, não impediu a indenização das diferentes espécies de danos extrapatrimoniais, especialmente porque algumas delas estão referidas expressamente no texto constitucional (tais como imagem e honra).

O que ocorreu, no Brasil, foi a constatação da necessidade do uso de uma melhor técnica para esclarecer e facilitar a compreensão e a aplicação da tutela aos interesses imateriais pessoais juridicamente relevantes.

Sendo possível expressar figurativamente esse tema, tem-se um guarda-chuva, representando o gênero danos imateriais, e, sob esse guarda-chuva, estão diferentes espécies de danos extrapatrimoniais, tais como o dano à imagem, o dano à intimidade, o dano à vida privada, o dano à identidade pessoal, o dano à honra, o dano moral puro, o dano existencial, o dano à saúde (psicofísica, englobando as subespécies especializadas do dano estético e o dano psicológico) etc.

Tais danos podem ocorrer isolada ou conjuntamente, conforme as circunstâncias fáticas de um evento deletério, e suas consequências.

Com esse cenário, paulatinamente verifica-se um aperfeiçoamento da matéria no sistema jurídico, notadamente na doutrina e na jurisprudência, tendo-se iniciada a

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abordagem doutrinária do dano existencial, no Brasil, com
a publicação do artigo intitulado “Dano existencial: a tutela
da dignidade da pessoa humana”, da autoria de Amaro Alves de Almeida Neto, em 200510.

Em 2009, foi publicado o primeiro livro tratando do dano existencial11, sendo que, atualmente, o tema passou a ser explorado em maior dimensão no direito brasileiro.

A primeira referência expressa do dano existencial, no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi feita pelo Desembargador Leonel Pires Ohlweiler, em processo julgado no final de 2011, tratando da suspensão imotivada de fornecimento de água12a um cliente da companhia de abastecimento.

Esse tipo de dano também passou a ser explorado na prática do judiciário trabalhista, a partir de diversas ações judiciais propostas perante a Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, contra uma rede de supermercados que submeteu empregados a jornadas excessivas de trabalho.

Através do sítio do TRT da 4ª Região, é possível constatar que o primeiro acórdão proferido com referencia expressa ao dano existencial é o RO n. 0000105-14.2011.5.04.0241, de março de 2012, tendo como relator o Desembargador José Felipe Ledur13.

Nesse acórdão, o Tribunal afirmou que as jornadas excessivas habituais fazem com que existam privações injustas dos empregados à esfera realizadora pessoal fora do ambiente de trabalho, tendo sido reconhecido expressamente o dano existencial como espécie autônoma de dano extrapatrimonial, passível de indenização, tendo como fundamento a dignidade humana.

Com isso, torna-se necessário analisar em que medida essa teoria repercutiu no direito do trabalho, bem como estabelecer de que modo ela pode colaborar ao desenvolvimento de uma teoria geral de danos extrapatrimoniais na seara laboral.

4. Conceito e substrato axiológico do dano existencial

O dano existencial é entendido como uma alteração prejudicial, juridicamente relevante e involuntária, total ou parcial, permanente ou temporária, em uma ou em mais atividades componentes da rotina da vítima, que contribua à sua realização pessoal.

O dano existencial atinge as atividades realizadoras pessoais, é sobretudo um dano ao direito de personalidade, atingindo elementos externos essenciais ao livre...

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