A construção do estado de direito socioambiental a partir da ótica habermasiana: a consolidação do mínimo existencial socioambiental como elemento de afirmação da dignidade da pessoa humana

AutorTauã Lima Verdan Rangel
CargoMestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense
Páginas157-182

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1. Considerações iniciais

Debruça-se o presente nos pressupostos apresentados por Jürgen Habermas, em sua Teoria da Ação Comunicativa e que é estendido, posteriormente, para Direito e Democracia, consistente no primado que as teorias sociais modernas não podem estas alheias ao efetivo papel desempenhado pelo direito, no que toca à consolidação dos ideários da democracia. Faz-se necessário considerar que o Estado, no decorrer da modernidade, de maneira paulatina, foi edificando-se em um estado social e democrático de direito, passando a refletir os anseios da população. Neste passo, as forças decorrentes da dinamicidade concreta, exteriorizada por meio dos direitos fundamentais, dentre os quais sobreleva destacar os direitos de liberdade e de participação popular, ofertaram as condições de se vindicar, de modo determinante, a consolidação do liame existente entre direito e democracia, de modo que o estado de direito não pode ficar indiferente ao poder comunicativo desencadeado pelos procedimentos discursivos, em instâncias demo-cráticas e que, diretamente, afetam as dimensões que a própria sociedade reclama que sejam normatizadas sob a tutela do Estado. Impregnado por tais considerações, é possível, contemporaneamente, sustentar a construção de um estado socioambiental de direito, dispensando ao meio ambiente, em decorrência da proeminência assumida globalmente, tutela jurídica.

Desse modo, baseada em Jürgen Habermas, objetiva-se discorrer acerca da conformação do direito ao estado socioambiental, incluindo-se mais um elemento ao estado social e democrático de direito. Assim, ao erigir duas colunas essenciais, a participação sustentada e a prevalência de princípios ecológicos, o estado socioambiental de direito ambiciona, sobretudo, a construção da igualdade entre os cidadãos, manifestada a partir do controle jurídico do uso racional do meio ambiente, considerado em uma esfera de bem de uso comum. É notório que a complexidade que emoldura as questões ambientais, fortemente acentuadas em um cenário marcado por desigualdades sociais, conjugado com a massificação da pobreza e o agudo agravamento da degradação ambiental, assim como com o esvaziamento da capacidade

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regulatória do Estado, afiguram obstáculos a estruturação do estado socioambiental de direito. Entrementes, é carecido que a viabilidade seja intermediada pela ação conjunta do Estado e da coletividade, ressoando, no território nacional, o aspecto de corresponsabilidade, em relação ao meio ambiente, expressado no texto constitucional de 1988, em seu artigo 225, que erige o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como elemento integrante do ideário da dignidade da pessoa humana.

Salta aos olhos que incumbe ao Estado à promoção de educação e de informação ambiental, estruturando espaços de proteção ambiental e a execução do planejamento ambiental, tal como editar normas que objetivem a proteção e a preservação do ambiente e assegurar o acesso à justiça por meio de instrumentos eficientes para a tutela do meio ambiente. Por sua vez, a coletividade responsabilizada pelo dever constitucional de preservar e proteger o meio ambiente deve, primacialmente, conscientizar-se da crise ambiental global e da importância do exercício de uma cidadania pautada na participação. Nessa linha, cuida salientar que o estado socioambiental de direito reclama uma concepção integrada do ambiente na qual a proteção ambiente ocorre de maneira global e democrática, considerando todos os impactos provenientes da instalação de atividades ou obras potencialmente causadoras de poluição.

Nessa perspectiva, o presente edificará uma análise assentada em uma ponderação ecológica, na qual os interesses e direitos envolvidos sejam analisados de maneira plural e a par da defesa do ambiente, o legislador edifica outros fitos a serem perseguidos pelo poder público, como desenvolvimento econômico, necessidade de emprego, independência energética e defesa da concorrência. De igual modo, o presente socorre-se do aporte doutrinário apresentado pelo direito ambiental e direito constitucional, calcado nos conceitos tradicionais e imprescindíveis para o fomento da discussão, utilizando, para tanto, do discurso apresentado por Paulo Affonso Leme Machado, Celso

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Antonio Pacheco Fiorillo, José Afonso da Silva e Romeu Thomé, tal como a visão apresentada por Jürgen Habermas no que se refere à ideia de dignidade e direitos fundamentais, expressado em especial na obra Sobre a Constituição da Europa. No que tange à edificação da ótica do estado de direito socioambiental, será utilizado como insumo, sobretudo, as impressões apresentadas por Ingo Wolfgang Sarlet e tiago Fensterseifer.

2. Breve painel da estruturação do estado na modernidade: a juridificação na visão habermasiana

Em Teoria da Ação Comunicativa, Habermas apresenta como objeto de análise a patologia vivenciada pelas sociedades modernas capita-listas, em razão do liame e a interpenetração dos subsistemas economia e Estado, que, devido aos meios monetários e burocráticos, passam a interferir na reprodução simbólica do mundo da vida. Quadra salientar que o mundo da vida "é o espaço da interação mediada linguisticamente para o entendimento intersubjetivo orientado por pretensões de validade referentes às esferas axiológicas" (CARVALHO, 2009, p. 68). De maneira complementar, o mundo da vida pode ser descrito como o espaço em que ocorrem as experiências, relações intersubjetivas e valores que são familiares no trato cotidiano com os homens e as coisas. Pizzi, ao discorrer acerca do tema, coloca, com bastante ênfase, que no mundo da vida:

[...] o sujeito, enquanto tal, tem um mundo ao seu redor e a ele pertence - como os demais seres -, não necessitando recorrer à ciência experimental para afirmar a certeza disso. Não se trata, portanto, do mundo na virtude natural [...] mas é o mundo histórico-cultural concreto, das vivências cotidianas com seus usos e costumes, saberes e valores, ante os quais se encontra a imagem do mundo elaborado pelas ciências. (PIZZI, 2006, p. 63).

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Com efeito, é patente que a introdução de elementos capazes de modificar o mundo da vida reflete, de maneira direta, na percepção a ser apresentada pelo indivíduo, decorrendo tal fato da representação simbólica que passa a subsistir. "A economia e o Estado asseguram a reprodução material e institucional da sociedade moderna, sem, contudo, admitir o questionamento dos princípios que regem o seu funcionamento" (FREITAG, 1995, p. 142). Assim, o processo de modernização societária está intimamente relacionado às transformações ocorridas no sistema, à modernidade cultural e às transformações no mundo da vida. "Em função dessa leitura é sinalizada que a interferência sistêmica no mundo da vida traz consigo, inevitavelmente, processos de juridificação constituídos pela tendência de as sociedades modernas ampliarem significativamente a extensão do direito escrito" (BANNWART JÚNIOR; OLIVEIRA, 2009, p. 2.217).

É denotável que o direito estende, maciçamente, a sua incidência sobre novos assuntos sociais que eram tratados, principalmente, de maneira informal no mundo da vida tradicional. Cuida destacar que a regulação jurídica, no que se refere a novos âmbitos da sociedade, é densamente caracterizada pela extensão do direito em consonância com o desmembramento da matéria jurídica global em múltiplas searas peculiares, que reclamam especificidades próprias, a exemplo do que se observa com a questão ambiental, em especial a partir da década de 1970, com a construção de tratados internacionais a respeito do tema. Segundo Andrews (2010, p. 09), "o termo ‘juridificação’ tem um sentido próximo ao termo ‘judicialização’, que corresponde à substituição do debate político pela regulação legal; ainda assim, ele tem um sentido mais abrangente, pois se refere à formalização de todas as relações sociais e não apenas à substituição do debate político por normas e leis". Nessa perspectiva, a juridificação é descrita como um processo pelo qual os conflitos humanos são inteiramente despidos de sua dimensão existencial própria por meio do formalismo jurídico, sofrendo, via de consequência, desnaturação em razão da respectiva submissão a processos de resolução de natureza jurídica. trata-se, assim, de conferir aspecto jurídico a temas que florescem na dinamicidade da sociedade, a fim de dispensar tutela.

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"Habermas demonstra que o processo de juridificação nos âmbitos de ação estruturados comunicativamente, passa a ser organizado sob forma do direito moderno", consoante destaca Bannwart Júnior e Oliveira (2009, p. 2.217). Insta observar que em Teoria da Ação Comunicativa, especificamente no capítulo intitulado "Jornadas de Juridificação", Habermas apresenta quadro ondas de juridificação que, em síntese, estariam estruturadas: (i) Estado burguês que se desenvolveu na Europa ocidental, na forma de sistemas de Estados na época do Estado absolutista; (ii) Estado de direito, externalizado por meio do modelo paradigmático da monarquia alemã do século XIX; (iii) Estado demo-crático de direito, robustamente difundido na Europa e na América do norte, como consequência advinda dos ideários defendidos e hasteados na Revolução Francesa; e (iv) Estado social e democrático de direito...

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