A construção das normas de proteção social ao trabalho e seus fundamentos

AutorMagda Barros Biavaschi
Páginas19-27

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A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como "direito", em oposição ao poder do indivíduo condenado como "força bruta". A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. [...] A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. [...] O curso ulterior do desenvolvimento cultural parece tender no sentido de tornar a lei não mais a expressão da vontade de uma pequena comunidade - uma casta ou camada de uma população ou grupo racial - que, por sua vez, se comporta como um indivíduo violento perante outros agrupamentos de pessoas, talvez mais numerosas. O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos - exceto os incapazes de ingressar numa comunidade - contribuiriam com o sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém [...] à mercê da força bruta. [Freud, O mal-estar na civilização, 1930]

1. Introdução

Com profunda satisfação, recebi o irrecusável convite dos professores coordenadores Márcio Túlio Viana e Cláudio Jannotti da Rocha para integrar esta coletânea em homenagem à jovem e destacada professora e pesquisadora da Universi-dade de Brasília, UNB, líder do Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania", doutora Gabriela Neves Delgado. Filha da melhor cepa, Gabriela - assim vou chamá-la - é parceira combativa no Fórum Nacional Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização, FÓRUM. Com força e coragem, se tem embrenhado em coti-diana luta em favor da compreensão das normas sociais de proteção ao trabalho à luz de seus princípios fundamentais e constitucionais, sem deixar de analisar as transformações do mundo do trabalho contemporâneo, impactado por um capitalismo "sem peias"1 que, hegemonizado pelos interesses das finanças e movido por seu desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata2, encontra suporte em certa corrente de pensamento. Corrente essa que insiste, apesar das evidências em sentido contrário, em apontar para a suposta "rigidez" da legislação trabalhista como obstáculo à competitividade e ao incremento da produtividade, sinalizando para caminhos que já se mostraram desastrosos no final do século XIX e início do XX.

Aliás, aumento da competitividade e da produtividade tem sido uma das justificativas dos que defendem projeto de lei em tramitação no Parlamento brasileiro, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado da República que, sob o eufemismo da contratação via "empresas especializadas", busca, sem limites, ampliar as possibilidades da terceirização para quaisquer ramos de atividade. Acaso aprovado e não vetado pela Presidente da República, poderemos, no limite, ter empresas sem empregados e trabalhadores sem direitos. Trata-se do PL 4330/04 e, no Senado, o PLC 030/2015, que conta com a resistência da organização dos trabalhadores e de setores de representação da sociedade, movimentos sociais, centros de pesquisa e estudiosos das relações

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de trabalho que integram o FÓRUM3. Nesse espaço, Gabriela e o Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania", por ela liderado, têm destaque notório.

Para dar conta dessa homenagem, propus aos coordenadores, na condição de vetusta que sou, olhar para o processo de construção do Direito do Trabalho na Europa e no Brasil, dialogando com o movimento da economia e, assim, reforçando a importância de se conhecer, como acontece, aliás, com nossa homenageada, os fundamentos desse novo ramo do Direito que, com fisionomia própria e em tempos de capitalismo constituído, encontrou as condições materiais para nascer na Grande Indústria Inglesa do Século XIX, condições que, no Brasil, se deram mais tarde, em meio ao seu processo de industrialização. Assim, a partir dessa caminhada e com minhas limitadas condições pessoais, venho me somar a essa oportuna e justa homenagem.

Este texto está fundamentado em tese de doutorado defendida em 2005 no Instituto de Economia da Unicamp para obtenção do título de doutora em Economia Social do Trabalho4, fruto de pesquisa em diversas fontes materiais do Direito do Trabalho brasileiro, uma delas as reclamações propostas perante as antigas Juntas de Conciliação e Julgamento, paritárias e administrativas, criadas em 19325. Portanto, instituídas antes de existir a Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, e a Justiça do Trabalho, esta regulamentada em 1939 e instalada em 19416. Nessas reclamações, trabalhadores e trabalhadoras, pessoalmente ou por meio de seus sindicatos, clamavam pelo cumprimento das normas de proteção ao trabalho que estavam sendo inscritas no arcabouço jurídico de um país de capitalismo tardio7.

Tendo como uma das questões mostrar que a tese da cópia fascista não se sustenta teórica e empiricamente, com uma lente de longa duração, descortinou-se o processo de construção de um direito profundamente social, cujas origens estão fincadas no século XIX, compreendido como intervenção extramercado.

2. O direito do trabalho e o solapamento da ordem liberal

Foi na Grande Indústria Inglesa do Século XIX, em tempos de capitalismo constituído e de laissez-faire, que a venda assalariada da força de trabalho a outrem, de forma não eventual e subordinada, se deu de forma prevalente. Estavam dadas as condições para o nascimento de um novo ramo do Direito, que viria, mais tarde, fundamentado em princípios forjados no campo das lutas sociais. "Direito esse que nasceu em um cenário em que a natureza do Estado foi sendo modificada e a Ordem Liberal solapada. E em que, ao invés da prometida sociedade de homens iguais, livres e fraternos, o novo modo de produção acirrava desigualdades e aprofundava iniquidades."8

No século XIX, estruturou-se na Inglaterra o livre mercado. Berço da primeira revolução liberal, nela o laissez-faire encontrou circunstâncias históricas favoráveis à sua afirmação, aliadas à existência de um Parlamento que não representava a maioria do povo. O voto era censitário, fundado no direito de propriedade. Com a segunda revolução industrial9, a crescente industrialização, baseada nas indústrias de bens de capital, no carvão, no ferro e no aço, oferecia as condições para a expansão dos mercados. As ferrovias cortavam países, permitindo transporte de mercadorias e propiciando vasta acumulação de capital para investimento lucrativo, influindo na economia como um todo10. A Inglaterra articulava, sob sua regência, os interesses dos diferentes Estados Nacionais11.

Em meio a tal processo de acumulação do capital e de exploração sem limites da força de trabalho, agudizavam-se os conflitos e as tensões sociais, impulsionando a luta por direitos. De um lado, trabalhadores e trabalhadoras, adultos e crianças, desprotegidos; coisas humanas vendidas como mercadorias. De outro, os compradores da força de trabalho, capitalistas embalados por um desejo insaciável de acumulação da riqueza abstrata. Nas relações de poder das fábricas, imperava a força bruta do capital.

Todavia se, por um lado, a implantação do sistema fabril revolucionou o processo material de produção - o que, por se turno, acabou por revolucionar as condições de valorização do capital, intensificando-se, nesse processo, a exploração da força de trabalho com brutal desrespeito às condições mínimas de dignidade dos trabalhadores - por outro, formavam-se: uma classe operária homogênea e um mercado de trabalho unificado, com contornos específicos12. Ainda que a palavra de ordem fosse trabalhar até morrer, sem limites, concentrados nas fábricas, ao redor das máquinas, os trabalhadores se

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uniam, seguindo-se uma luta mais organizada do que outra, visando a manter salários, reduzir jornadas, melhorar as condições de trabalho. Nesse processo, foi se formando a consciência de si e, a seguir, da consciência de classe13.

A pressão pelo sufrágio universal aproximava as massas. Os partidos começavam a canalizar as reivindicações proletárias. Estruturavam-se movimentos de resistência que acabaram impulsionando a positivação das regras de proteção ao trabalho. O Manifesto Comunista, a Comuna de Paris e a Rerum Novarum foram marcos nesse processo.

O equilíbrio de poder do século XIX foi sendo rompido. A Inglaterra começava a perder espaço como a oficina do mundo. Por um lado, a ideia de mercado autorregulado começava a ser posta em xeque pelo próprio capital. Por outro, os trabalhadores e suas organizações pressionavam por uma regulação estatal que reduzisse as injustiças e as abissais desigualdades acirradas pelo modo de produção capitalista. Diante de uma realidade perversa, a pressão dos trabalhadores e de suas organizações, os intelectuais, a Igreja, os partidos políticos, passavam a demandar uma regulação apta a limitar a ação predatória do movimento do capital. O Estado liberal clássico do laissez-faire entrava em crise, passando a intervir nas relações sociais produzindo normas.

Localiza-se aqui a gênese do Direito do Trabalho, ou seja, um momento da história da sociedade em que as condições materiais, históricas, políticas, sociais, tornaram possível a emergência de um novo ramo do Direito, fundamentado em princípios forjados no campo das lutas sociais travadas em várias frentes. Um Direito que, desde sua gênese, rompeu com a lógica liberal da igualdade das partes e, informado por princípios próprios, tendo como objeto o trabalho humano, "livre", por conta alheia, não eventual, subordinado e remunerado, buscava compensar a assimetria nas...

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