O papel do processo na construção da democracia: para uma nova definição da democracia participativa

AutorDarci Guimarães Ribeiro; Felipe Scalabrin
Páginas155-168

Darci Guimarães Ribeiro. Doutor em Direito pela Universitat de Barcelona. Professor Titular da Unisinos e do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado. Professor Titular da PUC/RS. Advogado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil. Membro representante do Brasil no Projeto Internacional de Pesquisa financiado pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC – da Espanha. Email: darci.guimaraes@terra.com.br

Felipe Scalabrin. Bolsista voluntário no projeto Democracia, Participação e Processo: A concretização da democracia participativa através do Poder Judiciário. Email: fscalabrin@gmail.com

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"O povo inglês pensa ser livre e engana-se. Não o é senão durante a eleição dos membros do Parlamento. Uma vez estes eleitos, torna-se escravo e nada mais é". (ROUSSEAU, 1978, p. 132).

Introdução

As linhas que seguem têm por escopo uma análise jurídico-política – acepção dada por Calmon de Passos (1999, p. 70) – da democracia vigente com vistas a proporcionar, ainda que de maneira singela, uma nova alternativa para o florescimento de um espírito participativo do indivíduo na concretização da democracia contemporânea. Iniludível que o ente estatal se tipifica, hodiernamente, não só pelo adjetivo (Estado) de direito1, como também, pelo seu viés democrático. Dessa maneira, deve o Estado propiciar que a cidadania, elemento essencial da democracia, seja exercida em sua mais ampla plenitude. Contudo, cabe ao próprio cidadão ativo (ARENDT, 1990) pressionar as instituições para concretizar seus interesses.

Nessa perspectiva, surge o juiz como ator determinante na efetiva criação do direito e na solução das legítimas pretensões sociais, de sorte que a própria democracia se realiza quando resolvido o caso apresentado ao Poder Judiciário.

Para melhor esclarecer os meios através dos quais tal premissa se torna factível, necessário uma releitura da definição do adjetivo democrático, trazendo a tônica para o cidadão - e não apenas para o povo – e, com isso, penetrar nos meandros processuais, onde as garantias constitucionalmente previstas dão ao individuo meios de assegurar que ele se confronte com o posto e busque um aprimoramento do debate democrático. Mais que isso, necessário fazer a distinção entre democracia participativa e democracia representativa para enfim podermos evidenciar que a representatividade já não é mais capaz de sozinhaPage 157 realizar o autêntico ideário democrático, tão aspirado para a realização de uma sociedade justa e solidária.

Estabelecidos estes parâmetros mínimos acerca da forma do Estado, nos debruçaremos sobre a concretização desta através do processo judicial, entendido este como o meio pelo qual os direitos e as garantias constitucionais concretizados no ato criativo do juiz são determinantes para a persecução de uma identidade democrática do Estado.

1 Pressuposto democrático: o povo

Quando entramos no discurso democrático, o primeiro termo aberto é o povo. Não há dúvida que tal elemento deve integrar o conceito de democracia, na medida em que a própria palavra nasce para referi-lo. Tanto é assim que a palavra democracia deriva do grego "démokratía, de dêmos 'povo' + kratía, 'força, poder' (do v.gr. kratéó 'ser forte, poderoso')". Por outro lado, a primeira referência a este termo está em Tucídides (2000), colhida na oração fúnebre de Péricles aos atenienses mortos na guerra do Peloponeso:

Tenemos un régimen político que no emula las leyes de otros pueblos, y más que imitadores de los demás, somos un modelo a seguir. Su nombre, debido a que el gobierno no depende de unos pocos sino de la mayoría, es democracia. [...]. (ESBARRANCH, 200, p. 342).

Contudo qual o papel do povo no discurso democrático? Seria o pressuposto para atuação do Estado? Seria ele mero símbolo para validar o discurso da democracia? Com singela originalidade, mas com extrema profundidade, indaga Friedrich Müller, afinal, quem é o povo?

Segundo o filósofo alemão, muitas são as definições possíveis de povo – pensamento, aliás, partilhado por Kelsen (2000, p. 36-40) – razão pela qual faz uma proveitosa cisão conceitual acerca do termo: povo como meio de legitimar o Estado, povo-ativo (participante das decisões políticas); povo como instância global de atribuição de legitimidade, povo-ícone; e o povo como destinatário das decisões e atuações públicas. Para os fins do presente trabalho interessa-nos aqui apenas o último termo, contudo, nos é impossível adentrarmos nele sem antes permear, mesmo que perfunctoriamente, os demais significados.

Convém destacar, inicialmente, que a maioria das constituições modernas menciona a palavra povo como pilar de sustentação do Estado Democrático. Isto é, o Estado Democrático de Direito busca sua justificação – pretende sua legitimação – a partir do povo (MÜLLER, 2003, p. 50). Nessa perspectiva, tal definição de povo o enquadra na célebre frase de Lincoln – the governmentPage 158 of the people – na medida em que o governo está instituído por ele o povolegitimador. Tal povo não é palpável, mas verificável apenas como fonte de validade do poder estatal.

Por outro lado, aquele que irá ditar os caminhos do Estado, no que tange às suas estruturas políticas vigentes, é o denominado povo-ativo. Aquele que se constitui no legítimo destinatário dos direitos políticos e tem soberanamente a prerrogativa de, tempo a tempo, alterar os que representam seus desidérios através do processo eleitoral (MÜLLER, 2003, p. 55-7). Enfim, povo ativo é o titular dos direitos políticos e aquele que possibilita o governo do povo, the government of the people, le gouvernement du peuple.

Porém, o mais presente povo é o mais sorrelfo deles. É aquele que é invocado, mas que nunca se vê. É aquele cuja legitimidade não se faz presente no sistema. É o denominado povo-ícone. E se traduz naquela imagem de povo que é verbalizada pelos seus representantes e cujas decisões não são atribuíveis ao próprio povo em termos de direito vigente, mas, tão somente como palavra vã de falsa legitimidade. Em outros termos, se é o povo quem dita os critérios de escolha e decisão do Estado – que deverá sempre agir em consonância com o ordenamento jurídico – então toda a resolução estatal deve subsumir-se aos textos democracticamente postos e, em não o fazendo, teríamos o uso da palavra povo como meio para tornar válido algo que na origem não o é.

Ora, se há um povo legitimador (ativo), se há um povo deslegitimado (ícone) e se há aquele povo pelo qual se funda o próprio Estado, deve se fazer presente, também, o povo para o qual se erige o Estado. Eis aí o povo-destinatário, que diversamente dos outros, deve ser entendido sem restrições. O povo destinatário é compreendido em todo cidadão pelo qual o corpo social passa a ser responsável, é o rule for the people. Enquanto o povo-ativo é restrito, o povo-destinatário não o é, pois sobre ele recai todos os deveres positivos (prestação) e negativos (não interferência) do Estado, na medida em que atribuíveis a todo e qualquer indivíduo ou que nele se encontre inserido.

A análise feita por Friedrich Müller dos diferentes modos de se conceituar a palavra povo revela-nos que quando da aplicação do direito e da tentativa de efetivação do Estado Democrático, há uma plena confusão entre os muitos destinatários da democracia. Ocorre que as estruturas do sistema acabam por assegurar direitos apenas a determinados tipos de povo, ora povo-ativo ora povo-ícone, contudo esquece-se que a democracia é, acima de tudo, feita para todos e que mesmo que não seja construída por todos (e.g., inc. I e II, do art. 14 da CF) deve, obrigatoriamente, ser exercitável por todos. Não é sem rumo que temos presente em nosso ordenamento o acesso irrestrito ao PoderPage 159 Judiciário, segundo se depreende do inc. XXXV, do art. 5º da CF. Através deste direito fundamental, as incompatibilidades existentes no meio social se tornam resolúveis e todo indivíduo tem a potencialidade...

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